quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Tombamento Histórico

A pessoa que me contou sobre esse caso me garantiu ser ele verdadeiro e eu não tenho motivo nenhum para duvidar dela, longe disso. Mas como o tempo ladino já furtou- lhe da memória datas e nomes, optei por não identificar o município até que pudesse fazer as devidas pesquisas sobre o ocorrido!
O tal município, apesar de estar localizado a apenas 50 KM da capital de São Paulo, ainda mantém ares de cidade do interior; Praça com coreto, ruas de paralelepípedo e, é claro, um povo gentil e religioso.
Conscientes da importância da fé e das tradições na vida de um povoado, incomodava aos cidadãos ver a precária condição em que se encontrava sua mais antiga capela, abandonada pela prefeitura após a construção da nova Igreja Matriz da cidade.
As paredes da capela estavam descascadas, suas portas e bancos de madeira, apodrecendo, o interior, depredado... Era horrível de se ver e uma vergonha para o município e seus habitantes que, unidos em uma associação de moradores, circularam pela cidade um abaixo assinado pedindo o tombamento histórico da capela.
Milhares de assinaturas foram recolhidas e um representante foi com a brochura em mãos até o prefeito.

"Exelentíssimo! Nós, seus eleitores, queremos o tombamento da capela velha! Ela é a mais antiga do município, e se encontra em condições deploráveis. Temos que resolver isso!"

O prefeito folheia rapidamente o abaixo assinado pensando em todos aqueles possíveis eleitores e, como bom populista, concorda.

"Sim! Sim! A capela é muito antiga mesmo!"

Mexe na agenda e marca o dia para a cerimônia, encerrando aquela reunião com seu famoso...

"A vontade do povo é minha vontade!"

Enfim, chega o dia! Muita gente vai logo cedinho até a frente da capela para assistir o evento oficial de tombamento, vários comentam se não seria melhor realizar a cerimônia após as devidas reformas, outros respondem que para haver reforma é necessário que a capela seja primeiro considerada um patrimônio histórico!
Nem uma coisa!
Nem outra!
Todos se calam com a entrada dramática do prefeito que vem em pose grega "montado" num trator e, depois de desfilar frente ao seu boquiaberto e confuso eleitorado, começa a derrubar as paredes da capela.

O fato é que o prefeito não havia lido o documento que lhe fora entregue, também não sabia o que era um tombamento histórico, para ele tombar era derrubar! Se o povo queria isso, ele faria! "Aquela capela velha estava caindo aos pedaços mesmo!"

O prefeito foi impedido antes de por abaixo toda a estrutura.
Nunca mais ele foi eleito e nem a capela elegida a marco histórico, mas com certeza se tornou um!
Me foi dito que ainda hoje ela está lá, metade em pé, metade ao chão. Preciso conferir!

As Imperfeições do Diamante

Amor, sempre ele!
Conversando com uma amiga acabamos entrando nesse tema.
Essa amiga é uma mulher linda, não apenas por fora (em seus cabelos loiros, olhos azuis e pele rosada num corpo pequeno, porém, extremamente proporcional e sensual) mas também por dentro. Talvez ela seja a pessoa mais meiga que eu conheça, daquele tipo que a companhia faz bem. Que tem boas vibrações!
Pode parecer, num primeiro momento, se tratar de mais uma dessas "loirinhas aguadas", mas o signo de escorpião fez o favor de temperar- lhe a personalidade com leve toque de mistério e melancolia, que é possível perceber no canto de sua boca, escapando ao fim de certos sorrisos.
Sim! Estou falando demais dela!
Isso porque é uma mulher por quem é muito fácil de se apaixonar.
Apesar disso ela não é casada nem está namorando.
Considera- se solitária e tem medo de terminar assim, o que faz com que mantenha vivo um vínculo com um ex- namorado, que ainda é apaixonado por ela, mesmo não sentindo o mesmo por ele.

"Pelo menos sei que, aconteça o que acontecer, tem alguém que gosta de mim!"

Foi o que ela me respondeu quando eu disse que considerava errado fazer isso com ele, alimentar uma esperança não permitindo que o outro siga em frente.
Concordo com ela que é muito difícil encontrar alguém que realmente goste de nós, mas, mesmo quando encontramos, isso não é necessariamente amor.
Amor é mais dar do que receber, querer apenas receber é só egoísmo.
Não que eu a considere egoísta, acho apenas que quando estamos a "procura" de alguém para passarmos o resto de nossas vidas, analisemos as coisas pelo ângulo errado.
Buscamos alguém que seja o mais perfeito possível e tentamos ser perfeito para essa pessoa também, acabamos não sendo nós mesmos, sendo artificiais.
Na verdade devíamos buscar alguém que nos fizesse sentir à vontade, onde as coisas mais desagradáveis de nosso dia a dia fossem naturais, afinal, nem tudo cheira a rosas!
Ao invés de se perguntar coisas como:

"Eu passaria o fim de ano na praia com ele?"

Ou:

"Será que ela gosta do mesmo estilo musical que eu?"

Devíamos nos perguntar coisas do tipo:

"Se ela ficasse doente eu me incomodaria de limpar suas fezes e dar- lhe banho?"

"Ele me julgaria mal se me visse com meias furadas e dascabelada, ou talvez bêbada e vomitando?"

Não somos perfeitos, nem nunca seremos.
Achar quem goste do que temos de melhor e gostar do melhor das pessoas é fácil, já o que temos de pior....

Mas talvez aí resida o amor, assim como um diamante natural se diferencia de um artificial por suas imperfeições, tornando- se muito mais valioso!

Água para o espírito

Sou um homem de fé, mas não de religiões! Fato esse que parece nunca ter sido muito bem aceito por alguns amigos religiosos.
Um deles, certa vez, me perguntou o que era a fé para mim?
Não lhe respondí, não conseguí encontrar as palavras adequadas para descrevê- la.
Mas isso não significa que não tenha pensado no assunto!
Ainda hoje não sei dizer ao certo o que é a fé, creio que ela seja como a água, quanto mais pura, menos se tem o que falar sobre ela: Não tem cor; não tem cheiro; não tem sabor... é praticamente indescritível, como se não existisse!
Mesmo assim, tão "neutra", é a substância mais vital ao nosso corpo, como a fé é para nosso espírito.
Proporciona satisfação, é isso que sinto e que vai além de qualquer definição que possa dar.
Com certeza as religiões são uma fonte abundante dessa "água".
Só não devemos esquecer que, apesar da água ser tão boa e vital à vida, pode nos afogar se consumida em demasia.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

SOTURNO

Soturno; adj. Sombrio; Turvo de aspecto; tristonho; pavoroso.

Como malditos vampiros vivemos nessa cidade. Dormindo durante todo o dia em quartos lacrados por pesadas cortinas blackout e saindo ao escurecer, por ruas avermelhadas pelas luzes de mercúrio dos postes, em busca de sangue!
Somos jornalistas da madrugada e essa é nossa rotina! Ao todo, somos em treze, mas cada dois ou três de um veículo diferente. Jornais impressos, rádio, TV... Já eu, sou um videorrepórter solitário de uma emissora aberta. Trabalho sozinho. Prefiro assim!
Trabalhando no turno da madrugada da capital paulista cubro matérias factuais e só o que acontece nesse horário são assassinatos, chacinas, latrocínios, acidentes, incêndios, sequestros, tiroteios... Sou bombardeado constantemente por doses brutais de sofrimento, dor, miséria, ódio, falsidade e maldade em suas infinitas formas.
Nunca pense que já viu de tudo, há sempre mais para nos surpreender!
São Paulo, Metrópole do Caos!
Dividida em cinco regiões: Zona norte; Zona sul; Zona oeste; Zona leste e Centro. É nesta última que mantenho base por motivos logísticos, mais especificamante no bar Estadão, um 24hs que funciona como uma espécie de farol na madrugada de trevas, mas que, como qualquer luz solitária na escuridão, atrai todo tipo de insetos ao seu redor.
Viciados mentirosos com suas histórias manjadas: "Completar o dinheiro da passagem!" ou "Comprar remédios para a mãe doente!"
Prostitutas e travestis em busca de clientela para seus corpos!
Moleques de rua pedindo trocados!
Com o tempo é impossível não endurecer, é como se aos poucos sua alma fosse secando e você se tornasse imune a toda aquela miséria, apenas sobrevivesse dela sugando- a com a câmera de vídeo, tirando o máximo de sofrimento possível, como vampiro!
Foi esta frieza de espírito que me impediu de reconhecer aquele morador de rua que agarrou- se em meu braço enquanto eu comia um lanche sentado ao balcão do bar, em desespero ele dizia:

__ Você tem que ajudar! Tá todo mundo morrendo! Estamos sendo caçados! Ninguém se importa! Uma vez você quis ajudar! Vem comigo!

E tentou me puxar do balcão.
Para mim era mais um lunático típico da cidade e, pelo cheiro de bebida, bêbado ainda por cima!
Eu o empurrei e o segurança do estabelecimento tratou de arrastá- lo a força para fora. Mesmo assim ele continuava gritando:

__ Você tem que vir! Ver você mesmo! Vem! Vem Comigo!

Dando- lhe as costas continuei meu lanche. O segurança acertou nele alguns belos tapas, fazendo com que desistisse de tentar falar comigo e fosse embora.
Perito em ignorar esses infelizes, continuei lá por cerca de meia hora sem dar maior atenção ao fato.
Ao meu lado, dois agentes de trânsito discutiam sobre possíveis soluções para o congestionamento em horários de pico na radial leste. Quanto utilizaram o termo 'interligação Leste/Oeste', o rosto do morador de rua emergiu em minha memória e lembrei- me dele.
A grande cruz formada pela junção das interligações Norte/Sul e Leste/Oeste marca o coração da cidade, o ponto de acesso a todas as suas principais artérias em qualquer das regiões. Essa imensa cruz esconde também um segredo sob sí, em suas galerias subterrâneas! Uma verdadeira cidadela dos excluídos povoada por mendigos, um mundo escondido nos esgotos, tão organizado, que chegava a ter lideranças.
Era daí que conhecia aquele morador de rua, seu nome era Polaco e ele era uma dessas lideranças! Fora ele que impedira minha entrada nas galerias quando tentei cobrir uma matéria sobre a tal cidadela.
Mas algo estava errado! A lembrança que eu tinha daquele homem não era a desse patético e amedrontado infeliz que me abordara no Estadão, mas sim a de um frio e perigoso líder de um bando raivoso.
Fiquei imaginando o que poderia ter causado tanto medo em alguém que não tinha nada a perder e que já havia visto e vivido de tudo pelas ruas da capital.
Instigado por minha curiosidade decidí dar uma volta de carro sob os viadutos das interligações, por desencargo de consciência.
Anhangabaú... Baixada do Glicério... Avenida do Estado... Nada!
Estava dando a volta pelo Parque Dom Pedro para retornar ao Estadão quando ví de cima do viaduto diversos sedans pretos, todos importados, estacionados no pátio do Palácio das Indústrias, antiga sede da prefeitura de São Paulo.
Por sí só isso já era estranho. Mais ainda foi notar que o ocupante de um dos veículos se dirigia a pé para baixo do viaduto que eu transpunha.
Amaldiçoei minha sorte pelo retorno até aquele local ser tão distante, então parei nos arredores do mercado municipal e, com minha câmera de vídeo em punho, atravessei a avenida do Estado e me embrenhei na escuridão sob o pontilhão.
Na cavidade mais profunda daquelas trevas fui atraído por uma débil claridade oscilante que acabou me entregando uma passagem apertada até níveis inferiores.
O túnel começava em terra e transformava- se em úmidos tubos de concreto. Eram os esgotos!
Ia gravando todo o percurso com o coração disparado pela adrenalina, era isso que me impulsionava cada vez mais longe.
Comecei a sentir um forte cheiro de gasolina naquele ar rarefeito que, misturado ao vulto que ví descer do sedan importado e entrar naqueles túneis, deu- me idéias.

"Talvez seja algo ligado a Skinheads, crimes de racismo e coisas do gênero!"

Meus pensanentos foram interrompidos quando sentí alguém passando à minhas costas. Virei- me rápidamente, mas não havia ninguém.
Continuei em frente com a incômoda sensação de estar sendo seguido e descobrí a fonte da claridade que me guiara até alí.
Era impressionante! Já sabia de sua existêncio, mas nunca imaginara aquelas proporções!
Em uma imensa galeria (cerca de quinhentos metros quadrados) dezenas, talvez centenas, de barracos de palafita haviam sido construídos sobre as águas turvas daquele piscinão subterrâneo. Essa era a cidadela dos excluídos, iluminada por luzes puxadas clandestinamente das fações que por alí passavam, ligações tão precárias, que faziam as lâmpadas oscilarem como velas.
Novamente ouví ruídos no túnel atrás de mim e me virei, desta vez permanecí encarando a escuridão.
Concentrado, pude distinguir alguns sussurros.

__ Não! Lembre- se da trégua!

__ Mas e ele, por quê está aqui?

__ A maioria deles não sabe!

Com a certeza de que haviam pessoas me observando, escondidas pelo breu por onde eu havia entrado, perguntei:

__ Quem está aí?

Não tive tempo de obter nenhuma resposta pois fui atingido pelas costas na cabeça e desmaiei.

* * *

Minha cabeça latejando foi a primeira coisa que sentí. A segunda foram minhas mãos amarradas quando tentei colocar uma delas no epicentro da dor.

__ Está acordando!

Ouví alguém dizer.
Então abrí os olhos para deparar- me com uma multidão cheia de medo e raiva à minha frente, só faltavam foices e forcados.

__ Se tentar alguma coisa eu parto sua cabeça!

E um pedaço de pau foi atiçado na minha frente por um mulato forte.
Eu estava amarrado numa cadeira, não tinha muito o que tentar. Mesmo assim ví todas aquelas pessoas darem um passo para trás quando olhei ao redor procurando minha câmera.

__ Vamos acabar logo com ele!

Veio a voz do meio da turba.
Minhas tentativas de diálogo acabaram perdidas em meio ao burburinho que havia se iniciado e a massa começou a se fechar ao meu redor.

"É meu fim!"

Pensei.
Mas então veio um grito enérgico que paralisou o bando.

__ PAREM! Eu conheço esse homem, ele não é um deles!

Era o Polaco!
Me desamarraram e enquanto um curativo era feito em minha cabeça eu tentava obter algumas informações:

__ Mas que diabos está acontecendo aquí, Polaco?

__ É exatamente isso que está acontecendo aquí, diabos!

__ Como!?

O lider daqueles moradores de rua sentou- se num caixote ao meu lado e continuou:

__ Começou a acontecer há uns cinco meses, no inicio não nos demos conta, mas então foi aumentando.
"Muitos de nós começaram a desaparecer, sempre durante a noite.
Gritos terríveis eram ouvidos ecoando pelos túneis, quem entrava não saia mais.
Pensamos se tratar de algum animal, já tivemos problemas com jacarés por aqui! Organizei então uma caçada pelos túneis, mas aconteceu o contrário, nós é que fomos caçados por... por... por eles!"

__ E quem são "eles"?

Perguntei, cético quanto aquela história.

__ Quem, não! Oque? São vultos! Fantasmas famintos que é impossivel ver nitidamente! São o mau! São...

__ Já chega, eu entendí! E o que você quer de mim é uma matéria sobre isso, não é?

Polaco assentiu com a cabeça.

__ Tentamos procurar as autoridades, mas eles não se importam conosco.

__ Tudo bem! É só trazerem minha câmera que eu faço!

Aquelas pessoas haviam enlouquecido, só o que eu queria era ir embora dalí, mas de preferência com as imagens daquela cidadela singular! E para isso precisava da minha câmera de volta.
Polaco pediu para o que o mesmo mulato que havia me ameaçado com o porrete trouxesse meu equipamento e, enquanto esperava, perguntei por que o cheiro de gasolina naquele lugar era tão forte.

__ É a nossa armadilha! Espalhamos gasolina sobre a água, se eles tentarem entrar na cidadela nós os pegamos!

Só então percebí a que ponto havia chegado o desespero daquelas pessoas. Eram, literalmente, um barril de pólvora prestes a explodir!
Recebí a câmera e comecei a gravar. Com dois minutos de imagens dos barracos de palafita as inconstantes luzes da galeria se apagaram por completo!
Ao contrário do que seria de se esperar (um tumulto generalizado!) não houve um ruído seguer! Creio que a escuridão que se abateu sobre todos nós congelou nossas almas e nos deixou prostados como estátuas naquela ratoeira.
Não sei bem quanto tempo durou o silêncio, pareceu- me uma eternidade, até que foi quebrado por uma seqüência interminável de gritos. Gritos de dor! Agonia! Desespero!
Pessoas correndo as cegas esbarravam em mim, pelo som podia perceber que algumas caiam dos caminhos de madeira improvisados para dentro da água.

__ São eles! São eles!

Ouví gritar a voz do mulato! Em seguida uma tocha foi jogada na água e a gasolina sobre ela se incandesceu.
As chamas surgiram com tanta rapidez que, com o clarão formado, acabei deixando cair meu equipamento.
Tentei apanha- lo, mas não tive tempo. Toda a estrutura de palafita começou a ceder e o ar tornar- se carregado de fumaça.
Alguém guiou- me pelo braço até um túnel próximo, era o Polaco que estava acompanhado do mulato.
Não dissemos nada, apenas tossiamos e andavamos em direção a superfície.
Polaco ia na frente, eu atrás e por último o mulato que gritou repentinamente.
Ao me virar ví o corpo robusto daquele homem ser arrastado para a escuridão e calar- se ao som de ossos se quebrando.
Outro grito e Polaco também desapareceu.
Em pânico, comecei a correr!
Não fui longe, alguns passos somente até ser apanhado.
Sentí uma mão fria como gelo e de força descomunal agarrar meu pescoço pela nuca e empurrar- me violentamente de rosto contra a parede lodosa daquele túnel, não conseguia solta- la de seu abraço apertado mesmo utilizando meus dois braços. Era inútil! Não podia nem mesmo virar- me para encarar face a face meu atacante que com uma única mão me mantinha cativo.
Sentindo os nojentos insetos que habitavam o lodo daquelas paredes deleitarem- se com a pele de meu rosto, parei de debater- me e esperei pelo pior.

__ Voce não é como os daquí de baixo! Não pulsa como os daquí. Por isso ainda está vivo!

Disse uma voz sussurrante ao meu ouvido. E continuou!

__ Existe uma trégua! Nós não caçamos os seus! E vocês não caçam os nossos! Mantivemos a palavra saciando nossa fome aquí, longe de sua sociedade "democrática" e "livre"! Porque, então, corrompe a memória e a sabedoria dos que trataram acordos antes de você, vindo nos caçar aqui embaixo.

Sentí meu sangue gelar, não tanto pelas palavras que ele dizia, mas por perceber que, mesmo com sua boca tão próxima ao meu ouvido, era impossível ouvir qualquer respiração!
Eu não era assim, não era um covarde! Precisava reassumir meu autocontrole, precisava dizer algo!

__ Não vim caçar ninguém! Vim saber sobre pessoas que andavam desaparecendo, pois isso precisa acabar!

__ Pessoas sim! Mas não os seus! Vocês os excluíram de sua sociedade há muito tempo, os abandonaram aquí, ao próprio azar. Fazem parte dos dejetos de seu sistema "politico- econômico"! Aliás, devo parabenizar sua raça, ela está evoluíndo e se tornando cada dia mais parecida com a nossa! Fria e objetiva!

Uma risada aguda e sinistra partiu de sua boca e foi seguida por outra mais atrás, e outra mais adiante, e outra... e outra... e outra... Meu Deus! Quantos deles haviam alí? Não podia ver nada, apenas sentir o ardume do shorume daquele lodo que meu rosto comprimia invadindo meus olhos!
Deus! Sim, só restava ele!
Comecei a rezar baixo, mas fui calado pelo aperto intensificado daquela garra que agora me sufocava. Meu captor começou então a gritar, irado!

__ Não seja hipócrita! Suas orações são vazias, não passam por seu coração! Eu posso ver sua alma. Posso até sentir o cheiro dela! Você é tão maldito quanto nós, não se importa com nenhum dos infelizes desta catacumba gigante, veio apenas para se alimentar dessas vidas...

Ao dizer isso sentí algo ser colocado em minhas mãos.
Era minha câmera!

__ Você quer uma matéria, e não ajudar ninguém!

Queria negar.
Mas não podia.
Era verdade!

__ Em seu equipamento está gravado o incêndio no túnel principal, "um triste acidente cheio de vitímas, ocorrido enquanto você gravava na Cidadela dos Excluídos!" É isso que você dirá! É toda matéria que precisa, esqueça que um dia você soube a nosso respeito, do contrário, além de ver e sentir o cheiro de sua alma, sentirei também o gosto dela e, rezando você ou não para todos os seus santos de barro ou seu Deus mudo e invisível, descobrirá todo o frio de meu veneno!

A mão soltou- me e eu caí de joelhos buscando frenéticamente recuperar todo ar que me faltava.
Ainda arfando olhei em volta, não havia nenhum sinal de quem ou do que quer que fosse que tivesse estado alí.
Criaturas cujo rosto nem mesmo ví, talvez fosse melhor assim!
Ouví vozes e feixes de luz indistintos se aproximarem e em pouco tempo estava sendo socorrido pelos homens do corpo de bombeiros e encaminhado para o hospital.
Gostaria de poder dizer que fui um heroi e que, mesmo sob ameaças, seguí em cruzada pelos excluídos da cidade.
Mas não seria verdade!
Fiz exatamente o que me fora dito; "Um acidente terrível!" porém; "Um flagrante fantástico!"
Roubei suas almas com minha câmera, me alimentei de todas aquelas vidas, não apenas eu, mas também cada um dos milhares de cidadãos que contribuíram para os incríveis índices de audiência daquela tragédia!

Como malditos vampiros vivemos nessa cidade...

Dor Fantasma

Fábio olhava incomodado para a cadeira vazia a sua frente sem saber direito o porquê.
Durante anos após o trabalho parou naquela cafeteria, sentou- se na mesma mesa e tomou seu capuccino solitário, mas hoje aquela cadeira vazia o incomodava!

"Melhor eu me sentar no balcão, é estranho sentar sozinho numa mesa para dois!"

E foi para o balcão levando sua caneca.
Antes de terminar a bebida olhou novamente para a cadeira.

__ Tudo bem, colega?

A pergunta veio em sua direção, mas o homem a duas banquetas de distância não olhava para ele e sim para a chícara de chá, onde mergulhava e emergia na água quente o sachê com o mate.
Fábio virou o corpo na direção do vizinho e perguntou:

__ Perdão! O senhor disse alguma coisa?

Era um sujeito estranho, de nariz protuberante e avermelhado, sombrancelhas pontiagudas e volumosas e que não olhava para as pessoas quando falava com elas.

__ Perguntei se está tudo bem com você?

Repetiu para a chícara!
Fábio respondeu que sim, jogou uns trocados sobre o balcão, pediu licença ao desconhecido e continuou seu caminho para casa.

"Tipo esquisito!" Pensou.

Na cafeteria o homem depositou o sachê no pires, sorveu um gole do chá e disse olhando para o líquido ambar:

__ Interessante!

Fábio foi perseguido nos dias seguintes por uma estranha sensação, a mesma do olhar na cafeteria que tentava ver algo mais na cadeira vazia do que estava presente.
Em sua casa se pegava pensando em porque dormia num dos cantos e não no meio de sua cama de casal, ou então, olhando para algum prego solitário na parede, tentava se lembrar o que havia pendurado alí.
Aquela sensação que temos quando vamos viajar de que estamos esquecendo algo! Era assim que Fábio se sentia o tempo todo. Como se estivesse prestes a espirrar, mas o espirro não saisse.
No início não deu atenção àquilo, depois começou a achar que tinha enlouquecido, pois saía pela cidade tentando preencher lacunas, procurando algo, sem ter idéia do que era.
Onibus, metrô, carro, a pé, de uma ponta a outra da cidade ele ia com o peito angustiado, com um nó em sua garganta que teimava em não desatar.
Vagava por hospitais, albergues, praças, shoppings e qualquer lugar público por onde passasse olhando, não os lugares, mas as pessoas. Tinha necessidade de ver gente nova.
Apenas em um lugar não conseguia entrar, no parque do Ibirapuera que, ironicamente, era a apenas duas quadras de sua casa.
Em frente o portão principal olhava para as mulheres que passavam por ele praticando cooper, lembrava as vezes que já havia caminhado por aquele parque normalmente. Inúmeras vezes, mas não conseguia se lembrar de quando ou porque havia parado de frequenta- lo. Como lhe surgira aquela aversão?
Não fazia idéia e isso dava medo!
Além de tudo se sentia paranóico, como se estivesse sendo vigiado, seguido.
O dia dez de Dezembro foi o pior dos dias, tamanha era sua tristeza que já no momento em que acordou sentiu- se sem ar dentro de sua casa.
Cuspido pra rua, andou entre decorações de natal que em nada combinavam com o calor do verão. Suas pernas o levaram até a biblioteca municipal, ele entrou e começou a percorrer os corredores apinhados de livros, procurando nas lombadas algum título que o atraísse.

"É disso que preciso." Pensou. "Distração!"

Sua atenção acabou sendo atraída por um grupo de adolecentes que discutia ao redor de um volume de enciclopédia. Um dos jovens argumentava:

__ Como assim: "Hoje não é dia de nada!" Todo dia é dia de alguma coisa. Se até a secretária tem um dia dela!

__ Mas aqui não fala nada!

Dizia um outro, virando irritado o livro na direção do colega.

__ Só porque aí não diz não quer dizer que não seja dia de nada!

Enquanto puxava um livro da estante Fábio disse em direção aos garotos:

__ Palhaços!

O grupo de amigos olhou assustado para o homem, pensando que ele os estava ofendendo.
Vendo a expressão dos jovens Fábio explicou melhor:

__ Dez de Dezembro. Hoje é dia do Palhaço!

Exclamações de entendimento ecoaram da roda que, agradecendo, partiu em busca do volume "P" da ensiclopédia.

__ Você deve gostar muito de palhaços?!

A pergunta veio de alguém do outro lado da estante, Fábio só conseguia ver partes do rosto por entre a cortina de livros.

__ É estranho, mas na verdade eu detesto palhaços!

Respondeu esforçando- se para tentar ver melhor o rosto do homem que, do outro corredor, continuava suas perguntas:

__ Então você deve ter lido em algum lugar sobre a data?

__ É possível. Não me lembro!

Viu então as sombrancelhas pontiagudas pelas frestas e lembrou- se:

"O estranho na cafeteria!"

Correu para dar a volta na extensa estante, se era aquele lunático que o estava perseguindo, ele descobriria por que?
Mas o estranho havia sumido, olhou entre outros corredores, mas nada!
Jogou o livro que tinha nas mãos sobre uma das mesas do salão de leitura da biblioteca, havia desistido da idéia de ler qualquer coisa, estava intrigado!
Quando Fábio foi embora, o homem de estranhas sombrancelhas emergiu das sombras entre as estantes no mesanino.
Ele desceu calmamente as escadas, e foi até o exemplar abandonado sobre a mesa por Fábio.
Leu o título.

"ALICE ATRAVÉS DO ESPELHO"

Com um semblante preocupado disse para sí mesmo:

__ Interessante! Muito interessante mesmo!

Os dias seguintes foram terríveis para Fábio, a angústia... a paranóia... E um advento, pesadelos! Sempre o mesmo passou a vir visita- lo todas as noites: Ele correndo no Ibirapuera, ao lado do lago, desesperado e fatigado, tentando alcançar uma mulher que só podia ver a silhueta no contraluz, ela mantinha o rítmo, impassível, e ele, apesar dos esforços para alcança- la, ia ficando cada vez mais distante dela, que acabava sumindo na claridade do horizonte.
Era nesse momento que ele acordava num susto, encharcado de suor e com o nó na garganta tentando sufocá- lo.
Imagine uma goteira, pingando em sua cabeça por dias, para Fábio era uma cachoeira inteira tudo aquilo.
Já não estava apenas enlouquecendo, estava se afogando!
Numa manhã de domingo, após seu pesadelo diário, decidiu enfrentar seus medos.
Entrou no Parque do Ibirapuera, foi até o local de seu pesadelo, sentou- se em um banco de pedra entre eucalíptos e esperou.
Uma mulher vestida com roupas de ginástica passou por ele e lhe deu bom dia. Ele retribuiu o cumprimento e acompanhou com o olhar a mulher se dirigir até os rústicos aparelhos de ginástica instalados a poucos metros dali.
Sua respiração se tornou ofegante, o nó em sua garganta e em seu peito foi se apertando, apertando, até que explodiu!
Toda aquela angústia enfim se rompeu nele e deu vazão ao choro desesperado.
Não conseguia tirar os olhos da mulher que se alongava nos rústicos aparelhos do parque, mas o rosto não era mais dela, era de outra pessoa que Fábio não conhecia. Não conhecia? Então por que lhe era tão familiar? Por que continuava lá mesmo quando fechava os olhos com toda força?
Um balbucio foi tomando forma na boca de Fábio:

__ A...

Mas parecia não querer sair, como se o restante das letras ficassem presas na garganta.

__ A... A... Ali...

Via a cadeira vazia na cafeteria... E lá estava ela sentada!

__ Ali...

O prego solitário na parede de sua casa... E um retrato com ela pendurado nele!

__ Ali... Ali...

Sua cama de casal... E aquela mulher ao seu lado. O sorriso mais lindo que já vira!

__ ALICE!!!

Sim, seu nome era Alice!

__ Muito bem, chega!

A voz veio acompanhada de um homem saindo detrás dos arbustos e continuou:

__ Eu já devia ter acabado com isso na biblioteca!

Era o estranho de sombrancelhas pontiagudas.

__ Por que? Por que está me seguindo?

Fábio estava confuso, precisava de respostas e sabia que aquele homem as tinha.

__ Quem é você? O que está acontecendo comigo?

O desconhecido sentou- se no banco de frente a Fábio e, finalmente, olhou nos olhos dele enquanto falava.

__ Sei que tem muitas perguntas, vou tentar responde- las da melhor forma possível. Mas não se preocupe, em breve não precisará de nenhuma resposta é só continuar olhando para mim!

Os olhos azuis, quase brancos, emoldurados naquelas estranhas e escuras sombrancelhas, davam calafrios em Fábio, mas era impossível desviar o olhar. Estava preso nele.

__ Apesar de parecer que eu estou te seguindo, foi você que me procurou na verdade.
"Meu nome é Zofael, doutor Guilhermo Zofael. Sou hipnólogo, um dos maiores do país!
Há dois meses você veio até meu instituto com um pedido muito estranho! Dizia ter tido contato comigo anos antes, em épocas mais 'comerciais' de minha carreira. Durante uma apresentação de minhas técnicas eu havia feito você esquecer da existência do número quatro. Ficava contando de um a dez, sempre pulando o quatro, sem perceber nada até eu libertá- lo do transe.
'Quero esquecer uma pessoa!' Você me disse. 'Seu nome é Alìce!'
Me contou, então, que essa mulher, Alice, com quem havia vivido por cinco anos, tinha desaparecido sem deixar vestígios há dois e que, durante todo esse tempo, estava a procura dela.
Você dizia não suportar mais a dor, o sofrimento em que vivia, começou a pensar que talvez fosse melhor nunca tê- la conhecido do que viver aquela perda.
Foi então que lembrou- se de mim!
No início eu me recusei, disse que não era assim que as coisas funcionavam, uma pessoa e um número são coisas bem diferentes!
Mas você continuou insistindo e, devo confessar, ao pensar melhor no assunto me sentí tentado com a proposta. Não é sempre que se tem a possibilidade de testar os limites da hipóse terapeutica como num caso desses.
Fiz uma das sessões mais complexas de minha carreira e, no final, o sucesso.
Amputei de sua vida a mulher com quem você viveu por cinco anos como quem amputa um membro condenado do corpo.
Para que funcionasse tive que me excluir de suas lembranças também, mas, dada as proporções de uma intervenção hipnótica como a sua, achei melhor ficar de olho em você por algum tempo, ver se não haveria nenhum efeito colateral.
Achei incrível quando, assim como pacientes que tem braços ou pernas amputados e continuam sentindo dores e sensações em seus membros fantasmas, você continuou sentindo a ausência de algo em sua vida, sentindo sua dor fantasma.
A mulher não estava mais lá, mas a dor, a busca, o sentimento continuou.
É impossível apagar o amor!"

Fábio conseguiu desviar seus olhos dos olhos albinos e sinistros do Dr. Zofael.

__ Sim! Eu me lembro de tudo! A cafeteria onde eu e Alice nos encontravamos todos os dias após o trabalho para irmos juntos para casa!

E as cenas de toda uma vida esquecida iam passando pelos olhos lacrimejantes de Fábio.

__ Nosso quadro na parede, assim como todas as fotos e lembranças dela, que me desfiz para me preparar para a sessão com você! Os palhaços! Ela adorava palhaços e sempre que eu perguntava porque, ela dizia que era por ter nascido no dia deles. É claro! Dez de Dezembro foi o aniversário dela! No dia do Palhaço!

Olhou então para o parque ao redor.

__ E foi aquí que ela desapareceu! Por minha culpa!

O hipnólogo não disse nada, aquele homem não precisava de consolo, mas sim botar para fora todos os seus demônios.

__ Ela acordou cedo naquele domingo, me chamou para vir correr com ela, mas eu estava cansado, andava trabalhando demais, fiquei dormindo e ela se foi, enquanto eu dormia! Dormia!

A angústia o fez calar, desta vez não pela perda da companheira amada, mas pelas decisões tomadas.
Olhou para Zofael e com voz engasgada perguntou:

__ Será essa minha sina? Continuar nesta angústia? Continuar a procurá- la?

O doutor Guilhermo sorriu. Olhava para os raios de sol batendo no lago do Ibirapuera quando respondeu:

__ E não é a sina de nós todos? Procurar nosso grande amor! Você ao menos já sabe quem é o seu. E, se conseguiu encontra- la em meio ao esquecimento, tenho certeza que vai vê- la novamente, mesmo que seja em outros planos!

Ficaram lá parados muito tempo ainda, foi Zofael que quebrou o silêncio dizendo que precisava ir embora.

__ Você vai ficar bem, Fábio?

__ Não sei doutor, não sei mesmo!

__ Se precisar de minha ajuda, sabe onde me encontrar.

__ Obrigado doutor, mas não creio que esquecer seja a solução!

Doutor Guilhermo Zofael assentiu com a cabeça e, já caminhando, se despediu:

__ Sucesso em sua busca, meu amigo! Adeus!

Fábio ficou sozinho no banco do parque, ele não sabia se encontraria ou não Alice, mas de uma coisa tinha certeza, que jamais a esqueceria.