sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Pau é pau, pedra é pedra!

Entendo o "sim", posso entender o "não", mas não me peça para entender o "talvez", esse é tão vago, que me vejo no direito de interpretá-lo da forma que me for mais conveniente.

Quem responde a uma pergunta com "talvez" deixa a decisão nas mãos de quem ouve.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

In Vinus Veritás

O fogo queimando no interior do corpo de Andréia aumentava conforme aquela mão firme e quente subia por sua perna, levantando a barra de seu gélido vestido de seda e desnudando a coxa branca e macia até a altura da cintura fina.
Sua boca protestava.

__ Desgraçado! Filho da Puta! Te odeio!

Mas o quadril, comprimido entre a parede da sala e o corpo do homem, não sabia mentir, entregando a verdade nos movimentos que fazia, esfregando- se "vulgarmente" em busca de satisfação nos volumes da cintura colada a sua.
Com a outra mão o homem, cujo nome era Flávio, puxou para tráz os perfumados e lisos cabelos loiros da mulher, abrindo assim caminho para que seus lábios percorrecem do pescoço alvo ao suntuoso busto decotado!
Nem a boca podia mais mentir, mordia o lábio inferior, como era seu costume quando sentia prazer!
A mão na cintura de Andréia vagava os dedos lenta e suavemente pela pele.
Flávio podia sentir pêlos e poros se arrepiando nela.
Sabia ler os sinais, e aqueles diziam uma única coisa... "Me tome!"
Toda a palma da mão entrou em contato com a barriga trêmula de excitação, Flávio sentiu o piercing do umbigo encaixar- se entre os dedos. Devagar a mão foi escorregando para dentro da calcinha, se apossando dos desejos mais íntimos e pevertidos de Andréia.
Ela tirou o vestido de seda;
Ele, arrancou- lhe a calcinha com um puxão violento na peça de roupa.
Andréia emitiu um grito abafado, mais de prazer do que de dor, e da parede foram ao chão.
Flávio foi preso ao abraço impossível de se desvencilhar das pernas bem depilalas da mulher, unhas foram cravadas em suas costas e, entre gemidos, devorava e era devorado naquela fome insaciável dos prazeres da carne!
Ambos alucinados, entorpecidos pelo cheiro dos hormônios exalados por seus corpos suados e entrelaçados e pela garrafa de Chianti Clássico, consumido momentos antes.

"O vinho!"

Andréia pensou após o sexo.

"É tudo culpa dele! Toda vez que bebemos, dá nisso!"

E olhou para Flávio, dormindo ao seu lado no chão aquecido por seus corpos.
Mais uma vez ela tinha vindo para terminar de uma vez por todas aquela "maluquice" em que se metera, mas novamente após algumas taças estavam transando.
Flávio era um cara incrível, conhecedor de vinhos, sacava sempre de sua pequena adega doméstica a garrafa perfeita.
Esboçou um sorriso ao lembrar a comparação que ele fizera dela com aquele Chianti Clássico que haviam bebido, mais especificamente a cepa que geralmente era utilizada em sua produção.

__ A uva Sangiovese é muito parecida com você!

Ele dissera.

__ Provém da Itália, como sua família, é levemente picante, como você, são bastante ácidos, que é como você se porta com a maioria das pessoas, também parecem ser muito secos, porém, um bom apreciador consegue sentir seu toque adocicado e sabor de especiarias e ervas finas, tornando- se um apaixonado pelos refinados vinhos produzidos com esta cepa!

E pronto! Estava seduzida!
Era incrível como aquele homem conseguia fazer com que ela, sempre tão controlada, perdesse o juízo, fazendo "coisas" que nunca imaginara: Algemas! Vendas! Tapas! Insultos! Fetiches! Depravações!
Não haveria problema, afinal ele também era culto, misterioso, entendia de belas artes, gastronomia, sabia ser romântico... Se ela já não fosse noiva de outro!
Conheceu Flávio num momento de crise, mas agora seu noivado transcorria tão bem! Não era justo continuar a fazer aquilo com seu noivo.
Tudo bem que ele não era tão exótico, mas era um porto seguro! Com o noivo sabia como seria a vida nos próximos trinta anos. Já com o amante, não tinha certeza nem dos próximos dez minutos.
Flávio andava lhe cobrando algumas decisões, uma escolha entre ele e o outro, mas Andréia sempre dizia que estava confusa, ele então enchia a taça dela para que bebesse mais e dizia num sorriso triste.

__ In vinus veritás!
(No vinho a verdade!)

Deitada alí no chão Andréia tomou enfiu sua decisão.
Levantou- se e vestiu- se tomando cuidado para não acordar Flávio. Foi embora silensiosamente do apartamento dele e não atendeu mais suas ligações ou tentativas de encontro.
Ela se casou e algum tempo depois, num dia chuvoso em que se sentia entediada em casa vendo o esposo jogar video- game, resolveu sair e comprar um vinho para beberem juntos.
Escolheu um Chianti Clássico.
Abriu, encheu as taças, sorveram a bebida e o marido comentou.

__ Nossa! Seco esse vinho hein!

Andréia não conseguiu conter o choro que persistiu por muito tempo sem que nada pudesse ser feito.

domingo, 23 de agosto de 2009

Ingrediente Secreto

A surpresa talvez seja o ingrediente secreto do tempero da vida. O fato de não sabermos o que vem em seguida torna tudo mais "apetitoso", afinal, ansiedade dá fome!

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Sobre Ostras e Conchas

Gosto muito dos livros de Rubem Alves, foi lendo "Ostra feliz não faz pérola" que me coloquei a pensar nesse molusco singular.
A ostra é formada por duas conchas iguais porém inversas uma parte da outra para que sua união seja perfeita (Isso por sí só já acho incrível, iguais mas diferentes!)
Isoladamente cada parte não possui vida mas, quando estão juntas, se tornam uma unidade, um ser vivo, uma Ostra que, com o tempo, produz uma pérola em seu interior.
Talvez sejamos como conchas procurando nossa outra metade, buscando uma união tão perfeita, apesar das diferenças, que faça das duas partes um ser novo e único.
Cultivamos o desejo de gerar nossas próprias pérolas durante o tempo em que estivermos unidos ao nosso par!
Ou talvez sejamos apenas conchas solitárias na areia da praia, cujo tempo como Ostra já passou!

terça-feira, 11 de agosto de 2009

A História do Casarão Cinza

O casarão cinza no cume da colina era cercado pelo frio.
Fazia-o solitário a neblina pálida, nascida órfã a margem de um lago amargo, submisso aos pés da colina.
A água negra fazia subir seu bafo invejoso, erguendo assim as muralhas pardacentas que raio de sol algum poderia transpor.
Assim era o casarão cinza, uma casa com uma vaga lembrança da luz, onde as paredes úmidas eram salgadas como lágrimas e a angústia podia ser ouvida em madrugadas silenciosas, no ranger de ferro e concreto da estrutura. Era como se o próprio casarão tentasse mover-se e fugir daquele cume moribundo.
Já não se sabia, nem importava, quem o construíra. Fosse quem fosse, há muito havia sido mastigado e cuspido pelas águas sépticas do lago em alguma manhã triste.
Outros tentaram habitá-la... suicídio... loucura... assassinato... doença... e, finalmente, abandono!
A casa acabou tendo mais vida que seus moradores, era a única sobrevivente de uma guerra silenciosa entre uma colina e um lago.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Cometa Verde

Aqueles que pensam em fazer carreira na reportagem televisiva, saibam que terão de aturar muitos absurdos de suas chefias.
No inicio deste ano passou pelo céu de São Paulo um certo cometa verde, uma matéria ótima, quando produzida!
Infelizmente a emissora onde trabalho esqueceu do tal cometa, lembrando dele quando já era tarde demais para agendar qualquer observatório ou instituto de pesquisa. Ou seja, quando o infeliz já cruzava o céu.
Há alguns dias vinha trabalhando sozinho pois o repórter passava por alguns problemas pessoais.
Fui chamado até a redação, onde a chefia me passou minha pauta:
__ Tudo bem querido? Preciso que você pegue a câmera e grave o cometa verde que está passando no céu!
Fiquei pasmo!

Faça um teste; Pegue sua câmera de vídeo, espere anoitecer, e veja quantas estrelas você conseguirá gravar.
Nenhuma! As estrelas não emitem luz suficiente para serem captadas pelas lentes das câmeras, e o cometa mal poderia ser visto a olho nú, como vemos as estrelas.

Não quis entrar neste mérito, minha chefia não entende nada da parte teórica da imagem, isso nem era o mais complicado, poderia ter dito a ela que o céu era imenso, que seria como achar uma agulha no palheiro! Mas, em vez disso, optei pelo mais óbvio. Da janela da redação olhei para o céu, depois para a chefia, para o céu, chefia, céu... E disse:
__ O tempo está nublado!
A camada de nuvens era tão grossa que nem mesmo o brilho da lua podia ser visto atravéz dela, quanto mais o cometa verde!
A chefia olhou para o céu carregado e, após alguns segundos, "solucionou" o problema:
__ Então pegue uma viatura e veja se encontra algum ponto onde o céu esteja limpo.
Olhei uma última vez para aquela muralha que parecia estar estendida por sobre todo o Estado.
Nessas horas certos ditados passam por nossa cabeça; "Em Roma, seja como os romanos." "Quem está na chuva é para se molhar." "Nunca diga nunca!" Enfim, olhei prestativo para a chefia, dizendo: __ Já estou indo! __ E passei o resto da madrugada no bar de um amigo jogando sinuca e conversa fora!
De tempos em tempos me ligavam:
__ Conseguiu achar algum ponto?
__ Ainda não! __ Respondia.__ Mas estou procurando!
E, rindo, dava outra tacada, mandando a bola verde para a boca do canto.

Ficam, portanto, três conselhos:
Primeiro; Mesmo que não sejam vocês a opera-los, conheçam um pouco da parte técnica dos equipamentos para não falar nenhuma besteira e virar motivo de piada;
Segundo; Quando lhe pedirem algum absurdo, não se estresse ou discuta com seus chefes, na maioria das vezes eles só estão desesperados, tentando resolver algum erro que cometeram.
Terceiro; Quando voltar para a redação, faça uma cara de frustração pior que a de seu chefe. Além de fazer com que ele se sinta melhor você ainda marcará alguns pontos com ele, que encerrará o assunto dizendo: "Tudo bem! Nós tentamos!"

Fé Cega, Faca Amolada

I - O Vilarejo

Ela avançava, devorando tudo a sua frente. Rios, árvores, pedras... Nada podia se opor a sua passagem.
Assim entrou no vilarejo, faminta.
Veio pelos trilhos da serra, como um visitante que chega de uma longa jornada.
Engoliu dormente por dormente, até que toda a estação de trem se perdeu em seu estômago nebuloso.
Nem mesmo o orgulho dos habitantes do vilarejo resistiu: o relógio da estação, uma réplica fiel do Big Ben londrino, construído pelos colonos ingleses que trabalhavam na companhia férrea, uma forma de não se sentirem tão longe de sua terra natal.
A torre do monumento foi aos poucos desaparecendo, nem mesmo os ponteiros em seu topo puderam mais ser vistos.
Era uma demonstração de força, de que estava além do tempo. Sem pressa, a neblina continuou a saciar sua fome.
O vilarejo era dividido em duas partes, separadas pela estrada de ferro. A baixa, localizada na região de planalto entre os morros da serra, e a alta, que se espalhava encosta acima do morro, à direita da linha férrea, preenchendo desordenadamente do sopé ao cume.
A parte baixa era a mais antiga. Nela estavam escola, posto médico, os comércios e algumas residências que haviam sido moradia dos colonos europeus. A arquitetura desta parte era inglesa, toda em madeira de lei, simples, porém charmosa.
A parte alta era mais recente. Ali estavam a maioria das casas, resultado da expansão demográfica propiciada pela construção da ferrovia. Essas moradias na vila alta, como era chamada, não tinham o charme das situadas na vila baixa, eram de alvenaria, distribuídas entre si sem planejamento algum, o que fazia de seus becos e vielas um verdadeiro labirinto.
Apesar disso, cada vez mais as pessoas abandonavam a vila baixa para morar nas ruas sinuosas da vila alta, pois, com o fim da construção de todas as plataformas do engenhoso sistema funicular, responsável por movimentar os trens, os estrangeiros haviam retornado ao velho continente, vendendo seus belos e aconchegantes casebres de madeira aos trabalhadores brasileiros. Estes, por sua vez, desconheciam os cuidados necessários a este tipo de habitação, tão incomum a sua cultura. Com o tempo, e a fome voraz da neblina, a vila baixa foi se deteriorando. Hoje era apenas uma sombra do glamour dos dias passados.
Separadas pela linha do trem, estas duas vilas eram ligadas por uma precária passarela de madeira, já podre em grande parte de sua extensão e que nada tinha do requinte europeu ou da resistência da modernidade.
Os moradores de cada uma das vilas consideravam um risco atravessar tal passagem, mas ambos os lados o faziam. A parte alta para ir aos comércios, estação, escola... E a baixa por um único motivo: para ir à igreja, construída no topo da vila alta pelos brasileiros, pois os ingleses, todos protestantes, não haviam deixado lugar na parte baixa para construção de templos católicos.
A única menção católica que fora permitida na vila inglesa era o Pau da Missa, uma enorme árvore centenária, no centro da planície onde fora construída a vila dos ingleses. Pela sua localização, já havia servido como uma espécie de jornal da cidade. Avisos de bailes eram pregados nela, também os temas das missas, os obituários e qualquer outra informação relevante à comunidade.
Com o passar do tempo, apenas os obituários continuaram a ser pregados no Pau da Missa, o que, aliado aos inúmeros pregos enferrujados apodrecendo em seu tronco, dava a essa árvore um ar fúnebre como nenhuma outra no povoado.
Após saborear tudo na vila baixa, inclusive o Pau da Missa, a neblina subiu pela passarela, sem o medo mundano de sofrer qualquer acidente, e começou a se espalhar pela parte alta. Percorrendo vielas e becos, escalou o morro até seu cume.
Por fim, cercou a igreja, envolvendo-a lentamente como se degustasse uma sobremesa. Com o último vestígio da torre do sino encoberto, parou. Nada mais faltava para ser consumido.
E, assim, deitada sobre o vilarejo, pareceu adormecer.

II - Maria do Rosário

A beata Maria do Rosário, assim chamada por andar sempre pelo povoado com seu rosário de orações em mãos, olhava assustada pela janela da igreja para as muralhas brancas que se erguiam do lado de fora.
Ela conhecia bem aquela neblina, tinha certeza que algo muito ruim vivia nela. Ela própria já vira a sombra negra a perseguindo em dias nebulosos como aquele, no mesmo dia em que o marido morrera nos trilhos. “Um acidente!” Eles disseram. Mas ela sabia que ele havia sido empurrado pela mesma sombra que a perseguira.
Também o Padre Vito, santo homem, tinha sido encontrado morto após uma noite de nevoeiro, quando inspecionava o terreno onde seria realizada a quermesse da vila. Novamente, só um acidente! Quantos mais seriam necessários para que acreditassem nela.
Fosse o que fosse aquela força maligna, ela estava atrás dos devotos de Nossa Senhora, por isso sempre vinha em seu encalço, afinal, devota mais fiel que ela não havia em todo o vilarejo.
Aquilo devia ser alguma maldição lançada por aqueles ingleses pagãos. Pelo menos esse negócio de névoa era comum na terra deles, e eles não gostavam da Virgem Maria, isso tinham deixado bem claro muitas vezes. Acreditavam em Deus de uma forma tão fria que era quase como se não acreditassem. Não seria difícil que tivessem amaldiçoado o vilarejo e ido embora.
Sentia falta do Padre Vito, ele teria acreditado nela. Esse garoto, Padre Lúcio, que haviam colocado no lugar dele, falava sempre a mesma coisa. "Isso é tolice, Dona Maria!" Tudo para ele era tolice.
Seu jeito a irritava profundamente. Mesmo assim o esperava para que ele a acompanhasse até a parte baixa do vilarejo, onde ela morava, pois tinha medo de seguir sozinha.
Aproveitou a demora do padre para realizar mais algumas preces, uns Pai Nossos e muitas Ave Marias, tudo muito bem contabilizado nas contas do rosário em suas mãos como se fosse um ábaco.
Estava tão concentrada que nem viu quando o padre saiu da sacristia e se aproximou dela.
- Ainda aqui Dona Maria?
A beata deu um pulo, o Padre Lúcio se desculpou por tê-la assustado.
- Estou esperando o senhor, padre. Já que disse que tem que fazer uma visita lá na vila baixa, achei que talvez fosse melhor irmos juntos. Com essa neblina não é muito seguro andar sozinho pelas ruas!
O jovem padre sorriu sem jeito para a mulher supersticiosa a sua frente.
- Isso é tolice, Dona Maria!
O rosto da beata enrubesceu. O Padre Lúcio ajeitou a longa batina preta que vestia, tirou fios de cabelo imaginários de sua manga, continuando a falar em tom mais grave, de quem está acostumado a pregar sermões.
- Já disse que não há nada demais na neblina, além do mais, tenho que fechar a igreja ainda e resolver alguns problemas pendentes. Vou demorar um pouco, é melhor a senhora ir antes que escureça.
Se não fosse aquele irritante "Isso é tolice, Dona Maria!" a beata teria insistido, e mais, teria convencido o padre a escoltá-la até sua casa, pois não era mulher de aceitar "não" como resposta. Mas o jargão lhe era tão indigesto que preferiu mesmo ir embora sozinha.
Perdido no fundo da alma de Maria do Rosário estava até um desejo obscuro de que lhe acontecesse algo de ruim enquanto voltasse para casa, apenas para que aquele padreco se remoesse de culpa.
Esse desejo secreto passou rápido, tão logo a mulher pôs os pés fora da igreja e se viu envolta pelas sombras brancas que haviam tomado todo o povoado. Só queria chegar em casa, sã e salva. Logo!
Deu mais uma volta com o cachecol em seu pescoço, fez o sinal da cruz e se lançou neblina adentro.
As casas da vila alta haviam sido transformadas em borrões, cuja mente da beata tratava de dar contornos para tentar se localizar. Desceu, dobrou, cruzou, desceu de novo, subiu. E, quando pensou que já estava próxima da passarela, deu de frente com a igreja de onde saíra.
Ainda mais insegura do que na primeira vez, Maria do Rosário tornou a descer a ladeira que deveria levá-la rumo à precária passagem, desta vez tateando as paredes e muros pelo caminho, lentamente, parecia procurar instruções em braile que a tirassem dali.
"Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós..." E sussurrando para si mesma a reza, sempre com seu rosário nas mãos, ia passo a passo avançando através da névoa espessa. Ouvia o ritmo solitário de seus passos ligando em harmonia seu medo com aquele cenário sinistro em que se via perdida.
Ao chegar num cruzamento de vielas, parou. Não reconhecia o local, também pudera, tudo estava reduzido a borrões a sua volta.
Sim, parou! Mas continuou ouvindo os passos! Olhou para trás procurando a origem daquele som, de onde vinha, já que não pertenciam ao contato de seus sapatos com o chão.
O compasso parou assim que ela se virou. Podia jurar ter visto um vulto negro se escondendo atrás de um dos muros por onde passara alguns segundos antes.
Começou a ouvir o compasso de novo. Desta vez era seu coração batendo acelerado, sincronizou-o com suas passadas e, quase correndo, continuou a descer a ladeira.
Uma das voltas do cachecol se soltou. A beata, sem parar, jogou-o nas costas. Queria ir mais depressa, mas a idade não ajudava. Estava ofegante.
"Ave Maria! Cheia de graça..." A prece entregava o caminho nas mãos de Nossa Senhora, que não a desapontou. Foi com alívio que finalmente chegou à passarela. Na vila baixa não havia como se perder, estava salva.
"... o Senhor é convosco..." Já estava na metade do caminho de madeira quando sentiu um tranco em seu pescoço, algo querendo enforcá-la. Era o cachecol que mais uma vez havia se desenrolado e se enroscado em uma das tábuas soltas da passarela. Quanto mais a beata puxava, mais ele parecia se prender na madeira empenada.
"... bendita sois vós entre as mulheres..." Se ajoelhou no chão para soltar o cachecol. Na ponta da passarela o vulto negro reapareceu, o coração da beata quase parou! De repente o vulto se agachou, assumindo a mesma posição que gárgulas de pedra no topo das construções. Maria do Rosário soube que ele se preparava para o ataque e só fez continuar...
"... bendito é o fruto do vosso ventre..." A sombra partiu em sua direção, rasgando a neblina que parecia se abrir para sua passagem. A mulher apertou o rosário. Sentiu-o estourar em suas mãos, as contas se espalharem pelo chão, mas ela não parou de rezar, era isso que ele queria, o gárgula, tentava fazer com que a Virgem Maria não fosse invocada, mas ela não desistiria, não precisava de rosário para suas preces.
Fechou os olhos, com as mãos juntas recomeçou a oração em voz alta, seu desespero era tão intenso que cuspiu as palavras sem pausas nem mesmo para respirar.
- AvemariacheiadegraçasoSenhoréconvoscobenditasoisvósentreasmulh
eresbenditoéofrutodovossoventre...
Era tão intenso o clamor que a beata sentiu como se tivesse deixado o próprio corpo.
Quando abriu os olhos já estava escuro. Não sabia quanto tempo se passara, mas o que importava é que não havia mais nenhum sinal do gárgula negro. Baixinho, continuou suas preces, desta vez em agradecimento à santa. Soltou o cachecol e apressou o passo para chegar logo em casa.
Passou pelo Pau da Missa sentindo um calafrio na espinha. Só a idéia de ter seu nome pregado ali, como fora com seu pobre marido, era suficiente para lhe causar arrepios.
Detestava aquela árvore velha e podre. O pior de tudo era que a janela de sua casa, no final daquela rua, a emoldurava ao fundo como se fosse um quadro triste de algum desses pintores suicidas.
Entrou em casa, jogou o cachecol traidor em um canto, acendeu uma vela aos pés da santa e, após trocar de roupa, foi se deitar. Sem o rosário era difícil calcular, então rezou, rezou, rezou. Até que adormeceu.
A manhã veio disposta e varreu com raios solares a neblina indesejada de seus domínios.
Aos poucos os moradores do vilarejo foram ganhando a rua, se lançando a suas tarefas diárias e dando continuidade a vida.
A casa de Maria do Rosário, no entanto, permaneceu fechada até quase a hora do almoço, a beata não tinha o costume de se levantar tão tarde, mas o dia anterior fora tenso de tal maneira que havia acabado por lhe afetar o sono.
Com uma fisionomia cansada, levantou de sua cama e vagarosamente se dirigiu até a janela, convidando o sol a entrar na residência.
Os olhos doeram e se ofuscaram com o jorro de claridade, mas assim que a velha prostrada na janela com as mãos enrugadas a cobrirem protetoramente o rosto percebeu o burburinho de pessoas ao redor do Pau da Missa, todo o cansaço e todo o desconforto com a claridade desapareceram, dando lugar a uma lufada de ânimo e curiosidade de saber o que teria acontecido.
Em passo rápido percorreu a rua, abriu caminho entre as pessoas aglomeradas e começou a ler a mensagem pregada no tronco carcomido da árvore.
"Pobre padre!" Pensou consigo, num misto de pena e deleite. "Mais um acidente, quantos mais até que acreditem em mim? Se o padre Lúcio tivesse me ouvido e me acompanhado, nada disso teria acontecido."
E olhando para o novo rosário em suas mãos, a beata concluiu seus pensamentos.
"Com certeza a Virgem Maria o teria protegido!"
Mas agora era tarde, pois o padre Lúcio estava morto!

III - Padre Lúcio

Quando saiu de dentro da sacristia, o Padre Lúcio se surpreendeu ao ver a beata Maria ainda ali. Todos já haviam ido embora da igreja, de volta para suas casas, mas ela continuava lá, rezando!
No seminário tinha ouvido falar que em vilarejos remotos como aquele havia fiéis que beiravam o fanatismo, mas aquela senhora era demais.
Não apenas pelo seu jeito autoritário, querendo mandar nele mais que o próprio cardeal, nem pela forma prepotente como julgava ter sempre a razão sobre tudo. Na opinião daquele jovem padre, aquela beata era mesmo maluca. Vivia expondo suas idéias hereges sobre demônios e sombras vivas que matavam os devotos da cidade.
Se não fosse um homem de Deus, diria que não gostava dela, mas na posição que ocupava devia saber perdoar e tentar expiar seus pecados.
- Ainda aqui Dona Maria?
Um sorriso de satisfação ameaçou brotar no rosto do padre com o susto que a mulher levara, mas foi contido por pedidos de desculpa.
- Estou esperando o senhor, padre. Já que disse que tem que fazer uma visita lá na vila baixa, achei que talvez fosse melhor irmos juntos. Com essa neblina não é muito seguro andar sozinho pelas ruas!
- Isso é tolice, Dona Maria! Já disse que não há nada demais na neblina, além do mais, tenho que fechar a igreja ainda e resolver alguns problemas pendentes. Vou demorar um pouco, é melhor a senhora ir antes que escureça.
Assim que a beata transpôs o pórtico de saída, o jovem padre se sentou em um dos compridos bancos de madeira envernizada do salão da igreja, soltando um pesado suspiro de alívio.
Era mentira, não tinha nada para resolver ali e fechar a igreja não demoraria mais do que alguns minutos. Mas a simples idéia de ter que aguentar aquela velha até a parte baixa da cidade lhe era insuportável, preferia pagar penitência por seu pecado do que acompanhá-la.
Ajeitou a longa batina preta nas pernas e permaneceu sentado, tamborilando com os dedos em seus joelhos, cerca de quinze minutos.
- Acho que já deu!
E saiu sem olhar para a cruz sobre o altar cujo Cristo pregado nela parecia encará-lo, reprovando suas ações.
Desceu a ladeira em meio à densa neblina, percebendo que, apesar do pouco tempo que se estabelecera no vilarejo, já havia decorado os caminhos bem o suficiente para não se perder, nem mesmo em tardes nebulosas como aquela.
Ao se aproximar de um cruzamento de vielas, ponto crucial daquele labirinto urbano, ouviu uma reza muito baixa ser entoada. Quando finalmente conseguiu ligar a voz a pessoa, deu um pulo para trás do muro que acabara de passar.
"Não acredito que essa mulher ainda está aqui." Falava de Dona Maria que se encontrava parada na esquina do outro lado da rua. "A essa altura já deveria estar em sua casa."
Espiou pela lateral do muro. A beata não estava mais lá, devia ter continuado seu caminho. E ele faria o mesmo, só que num passo bem mais lento.
Sem pressa, chegou a ponta da passarela, onde novamente viu Maria do Rosário parada, rezando.
Instintivamente Padre Lúcio se agachou, fingindo amarrar seus sapatos.
"Mas o que é que eu estou fazendo, afinal?" Perguntou-se o jovem padre. "Isso não é jeito de um servo de Deus se comportar!"
Enquanto se levantava, o clérigo percebeu que algo estava errado. A voz da beata era de desespero e nem mesmo nexo havia no murmúrio que balbuciava.
Deixou de lado seus caprichos pessoais e correu para acudir a senhora naquela passarela.
Inesperadamente o jovem foi atacado pela mulher ao se aproximar. Maria estava fora de si, era como um animal que, ao ser acuado, ataca com toda sua selvageria.
O padre tentava contê-la, sem resultado. Ao dar um passo para trás, seu pé escorregou nas contas do rosário espalhadas pelo piso de madeira. Lúcio foi projetado de costas contra o corrimão da passarela, que, podre, não suportou o impacto e se partiu.
O Padre Lúcio foi, então, desaparecendo aos poucos dentro da neblina sob a passarela de madeira, onde a beata continuou em seu estranho transe até escurecer. E, assim como no dia em que esperava o marido buscá-la na estação de trem, e a noite em que o Padre Vito deveria encontrá-la para olharem juntos o terreno onde seria realizada a quermesse do vilarejo, quando voltou a si, não se lembrava de nada que havia acontecido.
Pobre padre, se tivesse descido com ela... Mas agora era tarde, padre Lúcio estava morto!