quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Dor Fantasma

Fábio olhava incomodado para a cadeira vazia a sua frente sem saber direito o porquê.
Durante anos após o trabalho parou naquela cafeteria, sentou- se na mesma mesa e tomou seu capuccino solitário, mas hoje aquela cadeira vazia o incomodava!

"Melhor eu me sentar no balcão, é estranho sentar sozinho numa mesa para dois!"

E foi para o balcão levando sua caneca.
Antes de terminar a bebida olhou novamente para a cadeira.

__ Tudo bem, colega?

A pergunta veio em sua direção, mas o homem a duas banquetas de distância não olhava para ele e sim para a chícara de chá, onde mergulhava e emergia na água quente o sachê com o mate.
Fábio virou o corpo na direção do vizinho e perguntou:

__ Perdão! O senhor disse alguma coisa?

Era um sujeito estranho, de nariz protuberante e avermelhado, sombrancelhas pontiagudas e volumosas e que não olhava para as pessoas quando falava com elas.

__ Perguntei se está tudo bem com você?

Repetiu para a chícara!
Fábio respondeu que sim, jogou uns trocados sobre o balcão, pediu licença ao desconhecido e continuou seu caminho para casa.

"Tipo esquisito!" Pensou.

Na cafeteria o homem depositou o sachê no pires, sorveu um gole do chá e disse olhando para o líquido ambar:

__ Interessante!

Fábio foi perseguido nos dias seguintes por uma estranha sensação, a mesma do olhar na cafeteria que tentava ver algo mais na cadeira vazia do que estava presente.
Em sua casa se pegava pensando em porque dormia num dos cantos e não no meio de sua cama de casal, ou então, olhando para algum prego solitário na parede, tentava se lembrar o que havia pendurado alí.
Aquela sensação que temos quando vamos viajar de que estamos esquecendo algo! Era assim que Fábio se sentia o tempo todo. Como se estivesse prestes a espirrar, mas o espirro não saisse.
No início não deu atenção àquilo, depois começou a achar que tinha enlouquecido, pois saía pela cidade tentando preencher lacunas, procurando algo, sem ter idéia do que era.
Onibus, metrô, carro, a pé, de uma ponta a outra da cidade ele ia com o peito angustiado, com um nó em sua garganta que teimava em não desatar.
Vagava por hospitais, albergues, praças, shoppings e qualquer lugar público por onde passasse olhando, não os lugares, mas as pessoas. Tinha necessidade de ver gente nova.
Apenas em um lugar não conseguia entrar, no parque do Ibirapuera que, ironicamente, era a apenas duas quadras de sua casa.
Em frente o portão principal olhava para as mulheres que passavam por ele praticando cooper, lembrava as vezes que já havia caminhado por aquele parque normalmente. Inúmeras vezes, mas não conseguia se lembrar de quando ou porque havia parado de frequenta- lo. Como lhe surgira aquela aversão?
Não fazia idéia e isso dava medo!
Além de tudo se sentia paranóico, como se estivesse sendo vigiado, seguido.
O dia dez de Dezembro foi o pior dos dias, tamanha era sua tristeza que já no momento em que acordou sentiu- se sem ar dentro de sua casa.
Cuspido pra rua, andou entre decorações de natal que em nada combinavam com o calor do verão. Suas pernas o levaram até a biblioteca municipal, ele entrou e começou a percorrer os corredores apinhados de livros, procurando nas lombadas algum título que o atraísse.

"É disso que preciso." Pensou. "Distração!"

Sua atenção acabou sendo atraída por um grupo de adolecentes que discutia ao redor de um volume de enciclopédia. Um dos jovens argumentava:

__ Como assim: "Hoje não é dia de nada!" Todo dia é dia de alguma coisa. Se até a secretária tem um dia dela!

__ Mas aqui não fala nada!

Dizia um outro, virando irritado o livro na direção do colega.

__ Só porque aí não diz não quer dizer que não seja dia de nada!

Enquanto puxava um livro da estante Fábio disse em direção aos garotos:

__ Palhaços!

O grupo de amigos olhou assustado para o homem, pensando que ele os estava ofendendo.
Vendo a expressão dos jovens Fábio explicou melhor:

__ Dez de Dezembro. Hoje é dia do Palhaço!

Exclamações de entendimento ecoaram da roda que, agradecendo, partiu em busca do volume "P" da ensiclopédia.

__ Você deve gostar muito de palhaços?!

A pergunta veio de alguém do outro lado da estante, Fábio só conseguia ver partes do rosto por entre a cortina de livros.

__ É estranho, mas na verdade eu detesto palhaços!

Respondeu esforçando- se para tentar ver melhor o rosto do homem que, do outro corredor, continuava suas perguntas:

__ Então você deve ter lido em algum lugar sobre a data?

__ É possível. Não me lembro!

Viu então as sombrancelhas pontiagudas pelas frestas e lembrou- se:

"O estranho na cafeteria!"

Correu para dar a volta na extensa estante, se era aquele lunático que o estava perseguindo, ele descobriria por que?
Mas o estranho havia sumido, olhou entre outros corredores, mas nada!
Jogou o livro que tinha nas mãos sobre uma das mesas do salão de leitura da biblioteca, havia desistido da idéia de ler qualquer coisa, estava intrigado!
Quando Fábio foi embora, o homem de estranhas sombrancelhas emergiu das sombras entre as estantes no mesanino.
Ele desceu calmamente as escadas, e foi até o exemplar abandonado sobre a mesa por Fábio.
Leu o título.

"ALICE ATRAVÉS DO ESPELHO"

Com um semblante preocupado disse para sí mesmo:

__ Interessante! Muito interessante mesmo!

Os dias seguintes foram terríveis para Fábio, a angústia... a paranóia... E um advento, pesadelos! Sempre o mesmo passou a vir visita- lo todas as noites: Ele correndo no Ibirapuera, ao lado do lago, desesperado e fatigado, tentando alcançar uma mulher que só podia ver a silhueta no contraluz, ela mantinha o rítmo, impassível, e ele, apesar dos esforços para alcança- la, ia ficando cada vez mais distante dela, que acabava sumindo na claridade do horizonte.
Era nesse momento que ele acordava num susto, encharcado de suor e com o nó na garganta tentando sufocá- lo.
Imagine uma goteira, pingando em sua cabeça por dias, para Fábio era uma cachoeira inteira tudo aquilo.
Já não estava apenas enlouquecendo, estava se afogando!
Numa manhã de domingo, após seu pesadelo diário, decidiu enfrentar seus medos.
Entrou no Parque do Ibirapuera, foi até o local de seu pesadelo, sentou- se em um banco de pedra entre eucalíptos e esperou.
Uma mulher vestida com roupas de ginástica passou por ele e lhe deu bom dia. Ele retribuiu o cumprimento e acompanhou com o olhar a mulher se dirigir até os rústicos aparelhos de ginástica instalados a poucos metros dali.
Sua respiração se tornou ofegante, o nó em sua garganta e em seu peito foi se apertando, apertando, até que explodiu!
Toda aquela angústia enfim se rompeu nele e deu vazão ao choro desesperado.
Não conseguia tirar os olhos da mulher que se alongava nos rústicos aparelhos do parque, mas o rosto não era mais dela, era de outra pessoa que Fábio não conhecia. Não conhecia? Então por que lhe era tão familiar? Por que continuava lá mesmo quando fechava os olhos com toda força?
Um balbucio foi tomando forma na boca de Fábio:

__ A...

Mas parecia não querer sair, como se o restante das letras ficassem presas na garganta.

__ A... A... Ali...

Via a cadeira vazia na cafeteria... E lá estava ela sentada!

__ Ali...

O prego solitário na parede de sua casa... E um retrato com ela pendurado nele!

__ Ali... Ali...

Sua cama de casal... E aquela mulher ao seu lado. O sorriso mais lindo que já vira!

__ ALICE!!!

Sim, seu nome era Alice!

__ Muito bem, chega!

A voz veio acompanhada de um homem saindo detrás dos arbustos e continuou:

__ Eu já devia ter acabado com isso na biblioteca!

Era o estranho de sombrancelhas pontiagudas.

__ Por que? Por que está me seguindo?

Fábio estava confuso, precisava de respostas e sabia que aquele homem as tinha.

__ Quem é você? O que está acontecendo comigo?

O desconhecido sentou- se no banco de frente a Fábio e, finalmente, olhou nos olhos dele enquanto falava.

__ Sei que tem muitas perguntas, vou tentar responde- las da melhor forma possível. Mas não se preocupe, em breve não precisará de nenhuma resposta é só continuar olhando para mim!

Os olhos azuis, quase brancos, emoldurados naquelas estranhas e escuras sombrancelhas, davam calafrios em Fábio, mas era impossível desviar o olhar. Estava preso nele.

__ Apesar de parecer que eu estou te seguindo, foi você que me procurou na verdade.
"Meu nome é Zofael, doutor Guilhermo Zofael. Sou hipnólogo, um dos maiores do país!
Há dois meses você veio até meu instituto com um pedido muito estranho! Dizia ter tido contato comigo anos antes, em épocas mais 'comerciais' de minha carreira. Durante uma apresentação de minhas técnicas eu havia feito você esquecer da existência do número quatro. Ficava contando de um a dez, sempre pulando o quatro, sem perceber nada até eu libertá- lo do transe.
'Quero esquecer uma pessoa!' Você me disse. 'Seu nome é Alìce!'
Me contou, então, que essa mulher, Alice, com quem havia vivido por cinco anos, tinha desaparecido sem deixar vestígios há dois e que, durante todo esse tempo, estava a procura dela.
Você dizia não suportar mais a dor, o sofrimento em que vivia, começou a pensar que talvez fosse melhor nunca tê- la conhecido do que viver aquela perda.
Foi então que lembrou- se de mim!
No início eu me recusei, disse que não era assim que as coisas funcionavam, uma pessoa e um número são coisas bem diferentes!
Mas você continuou insistindo e, devo confessar, ao pensar melhor no assunto me sentí tentado com a proposta. Não é sempre que se tem a possibilidade de testar os limites da hipóse terapeutica como num caso desses.
Fiz uma das sessões mais complexas de minha carreira e, no final, o sucesso.
Amputei de sua vida a mulher com quem você viveu por cinco anos como quem amputa um membro condenado do corpo.
Para que funcionasse tive que me excluir de suas lembranças também, mas, dada as proporções de uma intervenção hipnótica como a sua, achei melhor ficar de olho em você por algum tempo, ver se não haveria nenhum efeito colateral.
Achei incrível quando, assim como pacientes que tem braços ou pernas amputados e continuam sentindo dores e sensações em seus membros fantasmas, você continuou sentindo a ausência de algo em sua vida, sentindo sua dor fantasma.
A mulher não estava mais lá, mas a dor, a busca, o sentimento continuou.
É impossível apagar o amor!"

Fábio conseguiu desviar seus olhos dos olhos albinos e sinistros do Dr. Zofael.

__ Sim! Eu me lembro de tudo! A cafeteria onde eu e Alice nos encontravamos todos os dias após o trabalho para irmos juntos para casa!

E as cenas de toda uma vida esquecida iam passando pelos olhos lacrimejantes de Fábio.

__ Nosso quadro na parede, assim como todas as fotos e lembranças dela, que me desfiz para me preparar para a sessão com você! Os palhaços! Ela adorava palhaços e sempre que eu perguntava porque, ela dizia que era por ter nascido no dia deles. É claro! Dez de Dezembro foi o aniversário dela! No dia do Palhaço!

Olhou então para o parque ao redor.

__ E foi aquí que ela desapareceu! Por minha culpa!

O hipnólogo não disse nada, aquele homem não precisava de consolo, mas sim botar para fora todos os seus demônios.

__ Ela acordou cedo naquele domingo, me chamou para vir correr com ela, mas eu estava cansado, andava trabalhando demais, fiquei dormindo e ela se foi, enquanto eu dormia! Dormia!

A angústia o fez calar, desta vez não pela perda da companheira amada, mas pelas decisões tomadas.
Olhou para Zofael e com voz engasgada perguntou:

__ Será essa minha sina? Continuar nesta angústia? Continuar a procurá- la?

O doutor Guilhermo sorriu. Olhava para os raios de sol batendo no lago do Ibirapuera quando respondeu:

__ E não é a sina de nós todos? Procurar nosso grande amor! Você ao menos já sabe quem é o seu. E, se conseguiu encontra- la em meio ao esquecimento, tenho certeza que vai vê- la novamente, mesmo que seja em outros planos!

Ficaram lá parados muito tempo ainda, foi Zofael que quebrou o silêncio dizendo que precisava ir embora.

__ Você vai ficar bem, Fábio?

__ Não sei doutor, não sei mesmo!

__ Se precisar de minha ajuda, sabe onde me encontrar.

__ Obrigado doutor, mas não creio que esquecer seja a solução!

Doutor Guilhermo Zofael assentiu com a cabeça e, já caminhando, se despediu:

__ Sucesso em sua busca, meu amigo! Adeus!

Fábio ficou sozinho no banco do parque, ele não sabia se encontraria ou não Alice, mas de uma coisa tinha certeza, que jamais a esqueceria.

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