quarta-feira, 21 de outubro de 2009

SOTURNO

Soturno; adj. Sombrio; Turvo de aspecto; tristonho; pavoroso.

Como malditos vampiros vivemos nessa cidade. Dormindo durante todo o dia em quartos lacrados por pesadas cortinas blackout e saindo ao escurecer, por ruas avermelhadas pelas luzes de mercúrio dos postes, em busca de sangue!
Somos jornalistas da madrugada e essa é nossa rotina! Ao todo, somos em treze, mas cada dois ou três de um veículo diferente. Jornais impressos, rádio, TV... Já eu, sou um videorrepórter solitário de uma emissora aberta. Trabalho sozinho. Prefiro assim!
Trabalhando no turno da madrugada da capital paulista cubro matérias factuais e só o que acontece nesse horário são assassinatos, chacinas, latrocínios, acidentes, incêndios, sequestros, tiroteios... Sou bombardeado constantemente por doses brutais de sofrimento, dor, miséria, ódio, falsidade e maldade em suas infinitas formas.
Nunca pense que já viu de tudo, há sempre mais para nos surpreender!
São Paulo, Metrópole do Caos!
Dividida em cinco regiões: Zona norte; Zona sul; Zona oeste; Zona leste e Centro. É nesta última que mantenho base por motivos logísticos, mais especificamante no bar Estadão, um 24hs que funciona como uma espécie de farol na madrugada de trevas, mas que, como qualquer luz solitária na escuridão, atrai todo tipo de insetos ao seu redor.
Viciados mentirosos com suas histórias manjadas: "Completar o dinheiro da passagem!" ou "Comprar remédios para a mãe doente!"
Prostitutas e travestis em busca de clientela para seus corpos!
Moleques de rua pedindo trocados!
Com o tempo é impossível não endurecer, é como se aos poucos sua alma fosse secando e você se tornasse imune a toda aquela miséria, apenas sobrevivesse dela sugando- a com a câmera de vídeo, tirando o máximo de sofrimento possível, como vampiro!
Foi esta frieza de espírito que me impediu de reconhecer aquele morador de rua que agarrou- se em meu braço enquanto eu comia um lanche sentado ao balcão do bar, em desespero ele dizia:

__ Você tem que ajudar! Tá todo mundo morrendo! Estamos sendo caçados! Ninguém se importa! Uma vez você quis ajudar! Vem comigo!

E tentou me puxar do balcão.
Para mim era mais um lunático típico da cidade e, pelo cheiro de bebida, bêbado ainda por cima!
Eu o empurrei e o segurança do estabelecimento tratou de arrastá- lo a força para fora. Mesmo assim ele continuava gritando:

__ Você tem que vir! Ver você mesmo! Vem! Vem Comigo!

Dando- lhe as costas continuei meu lanche. O segurança acertou nele alguns belos tapas, fazendo com que desistisse de tentar falar comigo e fosse embora.
Perito em ignorar esses infelizes, continuei lá por cerca de meia hora sem dar maior atenção ao fato.
Ao meu lado, dois agentes de trânsito discutiam sobre possíveis soluções para o congestionamento em horários de pico na radial leste. Quanto utilizaram o termo 'interligação Leste/Oeste', o rosto do morador de rua emergiu em minha memória e lembrei- me dele.
A grande cruz formada pela junção das interligações Norte/Sul e Leste/Oeste marca o coração da cidade, o ponto de acesso a todas as suas principais artérias em qualquer das regiões. Essa imensa cruz esconde também um segredo sob sí, em suas galerias subterrâneas! Uma verdadeira cidadela dos excluídos povoada por mendigos, um mundo escondido nos esgotos, tão organizado, que chegava a ter lideranças.
Era daí que conhecia aquele morador de rua, seu nome era Polaco e ele era uma dessas lideranças! Fora ele que impedira minha entrada nas galerias quando tentei cobrir uma matéria sobre a tal cidadela.
Mas algo estava errado! A lembrança que eu tinha daquele homem não era a desse patético e amedrontado infeliz que me abordara no Estadão, mas sim a de um frio e perigoso líder de um bando raivoso.
Fiquei imaginando o que poderia ter causado tanto medo em alguém que não tinha nada a perder e que já havia visto e vivido de tudo pelas ruas da capital.
Instigado por minha curiosidade decidí dar uma volta de carro sob os viadutos das interligações, por desencargo de consciência.
Anhangabaú... Baixada do Glicério... Avenida do Estado... Nada!
Estava dando a volta pelo Parque Dom Pedro para retornar ao Estadão quando ví de cima do viaduto diversos sedans pretos, todos importados, estacionados no pátio do Palácio das Indústrias, antiga sede da prefeitura de São Paulo.
Por sí só isso já era estranho. Mais ainda foi notar que o ocupante de um dos veículos se dirigia a pé para baixo do viaduto que eu transpunha.
Amaldiçoei minha sorte pelo retorno até aquele local ser tão distante, então parei nos arredores do mercado municipal e, com minha câmera de vídeo em punho, atravessei a avenida do Estado e me embrenhei na escuridão sob o pontilhão.
Na cavidade mais profunda daquelas trevas fui atraído por uma débil claridade oscilante que acabou me entregando uma passagem apertada até níveis inferiores.
O túnel começava em terra e transformava- se em úmidos tubos de concreto. Eram os esgotos!
Ia gravando todo o percurso com o coração disparado pela adrenalina, era isso que me impulsionava cada vez mais longe.
Comecei a sentir um forte cheiro de gasolina naquele ar rarefeito que, misturado ao vulto que ví descer do sedan importado e entrar naqueles túneis, deu- me idéias.

"Talvez seja algo ligado a Skinheads, crimes de racismo e coisas do gênero!"

Meus pensanentos foram interrompidos quando sentí alguém passando à minhas costas. Virei- me rápidamente, mas não havia ninguém.
Continuei em frente com a incômoda sensação de estar sendo seguido e descobrí a fonte da claridade que me guiara até alí.
Era impressionante! Já sabia de sua existêncio, mas nunca imaginara aquelas proporções!
Em uma imensa galeria (cerca de quinhentos metros quadrados) dezenas, talvez centenas, de barracos de palafita haviam sido construídos sobre as águas turvas daquele piscinão subterrâneo. Essa era a cidadela dos excluídos, iluminada por luzes puxadas clandestinamente das fações que por alí passavam, ligações tão precárias, que faziam as lâmpadas oscilarem como velas.
Novamente ouví ruídos no túnel atrás de mim e me virei, desta vez permanecí encarando a escuridão.
Concentrado, pude distinguir alguns sussurros.

__ Não! Lembre- se da trégua!

__ Mas e ele, por quê está aqui?

__ A maioria deles não sabe!

Com a certeza de que haviam pessoas me observando, escondidas pelo breu por onde eu havia entrado, perguntei:

__ Quem está aí?

Não tive tempo de obter nenhuma resposta pois fui atingido pelas costas na cabeça e desmaiei.

* * *

Minha cabeça latejando foi a primeira coisa que sentí. A segunda foram minhas mãos amarradas quando tentei colocar uma delas no epicentro da dor.

__ Está acordando!

Ouví alguém dizer.
Então abrí os olhos para deparar- me com uma multidão cheia de medo e raiva à minha frente, só faltavam foices e forcados.

__ Se tentar alguma coisa eu parto sua cabeça!

E um pedaço de pau foi atiçado na minha frente por um mulato forte.
Eu estava amarrado numa cadeira, não tinha muito o que tentar. Mesmo assim ví todas aquelas pessoas darem um passo para trás quando olhei ao redor procurando minha câmera.

__ Vamos acabar logo com ele!

Veio a voz do meio da turba.
Minhas tentativas de diálogo acabaram perdidas em meio ao burburinho que havia se iniciado e a massa começou a se fechar ao meu redor.

"É meu fim!"

Pensei.
Mas então veio um grito enérgico que paralisou o bando.

__ PAREM! Eu conheço esse homem, ele não é um deles!

Era o Polaco!
Me desamarraram e enquanto um curativo era feito em minha cabeça eu tentava obter algumas informações:

__ Mas que diabos está acontecendo aquí, Polaco?

__ É exatamente isso que está acontecendo aquí, diabos!

__ Como!?

O lider daqueles moradores de rua sentou- se num caixote ao meu lado e continuou:

__ Começou a acontecer há uns cinco meses, no inicio não nos demos conta, mas então foi aumentando.
"Muitos de nós começaram a desaparecer, sempre durante a noite.
Gritos terríveis eram ouvidos ecoando pelos túneis, quem entrava não saia mais.
Pensamos se tratar de algum animal, já tivemos problemas com jacarés por aqui! Organizei então uma caçada pelos túneis, mas aconteceu o contrário, nós é que fomos caçados por... por... por eles!"

__ E quem são "eles"?

Perguntei, cético quanto aquela história.

__ Quem, não! Oque? São vultos! Fantasmas famintos que é impossivel ver nitidamente! São o mau! São...

__ Já chega, eu entendí! E o que você quer de mim é uma matéria sobre isso, não é?

Polaco assentiu com a cabeça.

__ Tentamos procurar as autoridades, mas eles não se importam conosco.

__ Tudo bem! É só trazerem minha câmera que eu faço!

Aquelas pessoas haviam enlouquecido, só o que eu queria era ir embora dalí, mas de preferência com as imagens daquela cidadela singular! E para isso precisava da minha câmera de volta.
Polaco pediu para o que o mesmo mulato que havia me ameaçado com o porrete trouxesse meu equipamento e, enquanto esperava, perguntei por que o cheiro de gasolina naquele lugar era tão forte.

__ É a nossa armadilha! Espalhamos gasolina sobre a água, se eles tentarem entrar na cidadela nós os pegamos!

Só então percebí a que ponto havia chegado o desespero daquelas pessoas. Eram, literalmente, um barril de pólvora prestes a explodir!
Recebí a câmera e comecei a gravar. Com dois minutos de imagens dos barracos de palafita as inconstantes luzes da galeria se apagaram por completo!
Ao contrário do que seria de se esperar (um tumulto generalizado!) não houve um ruído seguer! Creio que a escuridão que se abateu sobre todos nós congelou nossas almas e nos deixou prostados como estátuas naquela ratoeira.
Não sei bem quanto tempo durou o silêncio, pareceu- me uma eternidade, até que foi quebrado por uma seqüência interminável de gritos. Gritos de dor! Agonia! Desespero!
Pessoas correndo as cegas esbarravam em mim, pelo som podia perceber que algumas caiam dos caminhos de madeira improvisados para dentro da água.

__ São eles! São eles!

Ouví gritar a voz do mulato! Em seguida uma tocha foi jogada na água e a gasolina sobre ela se incandesceu.
As chamas surgiram com tanta rapidez que, com o clarão formado, acabei deixando cair meu equipamento.
Tentei apanha- lo, mas não tive tempo. Toda a estrutura de palafita começou a ceder e o ar tornar- se carregado de fumaça.
Alguém guiou- me pelo braço até um túnel próximo, era o Polaco que estava acompanhado do mulato.
Não dissemos nada, apenas tossiamos e andavamos em direção a superfície.
Polaco ia na frente, eu atrás e por último o mulato que gritou repentinamente.
Ao me virar ví o corpo robusto daquele homem ser arrastado para a escuridão e calar- se ao som de ossos se quebrando.
Outro grito e Polaco também desapareceu.
Em pânico, comecei a correr!
Não fui longe, alguns passos somente até ser apanhado.
Sentí uma mão fria como gelo e de força descomunal agarrar meu pescoço pela nuca e empurrar- me violentamente de rosto contra a parede lodosa daquele túnel, não conseguia solta- la de seu abraço apertado mesmo utilizando meus dois braços. Era inútil! Não podia nem mesmo virar- me para encarar face a face meu atacante que com uma única mão me mantinha cativo.
Sentindo os nojentos insetos que habitavam o lodo daquelas paredes deleitarem- se com a pele de meu rosto, parei de debater- me e esperei pelo pior.

__ Voce não é como os daquí de baixo! Não pulsa como os daquí. Por isso ainda está vivo!

Disse uma voz sussurrante ao meu ouvido. E continuou!

__ Existe uma trégua! Nós não caçamos os seus! E vocês não caçam os nossos! Mantivemos a palavra saciando nossa fome aquí, longe de sua sociedade "democrática" e "livre"! Porque, então, corrompe a memória e a sabedoria dos que trataram acordos antes de você, vindo nos caçar aqui embaixo.

Sentí meu sangue gelar, não tanto pelas palavras que ele dizia, mas por perceber que, mesmo com sua boca tão próxima ao meu ouvido, era impossível ouvir qualquer respiração!
Eu não era assim, não era um covarde! Precisava reassumir meu autocontrole, precisava dizer algo!

__ Não vim caçar ninguém! Vim saber sobre pessoas que andavam desaparecendo, pois isso precisa acabar!

__ Pessoas sim! Mas não os seus! Vocês os excluíram de sua sociedade há muito tempo, os abandonaram aquí, ao próprio azar. Fazem parte dos dejetos de seu sistema "politico- econômico"! Aliás, devo parabenizar sua raça, ela está evoluíndo e se tornando cada dia mais parecida com a nossa! Fria e objetiva!

Uma risada aguda e sinistra partiu de sua boca e foi seguida por outra mais atrás, e outra mais adiante, e outra... e outra... e outra... Meu Deus! Quantos deles haviam alí? Não podia ver nada, apenas sentir o ardume do shorume daquele lodo que meu rosto comprimia invadindo meus olhos!
Deus! Sim, só restava ele!
Comecei a rezar baixo, mas fui calado pelo aperto intensificado daquela garra que agora me sufocava. Meu captor começou então a gritar, irado!

__ Não seja hipócrita! Suas orações são vazias, não passam por seu coração! Eu posso ver sua alma. Posso até sentir o cheiro dela! Você é tão maldito quanto nós, não se importa com nenhum dos infelizes desta catacumba gigante, veio apenas para se alimentar dessas vidas...

Ao dizer isso sentí algo ser colocado em minhas mãos.
Era minha câmera!

__ Você quer uma matéria, e não ajudar ninguém!

Queria negar.
Mas não podia.
Era verdade!

__ Em seu equipamento está gravado o incêndio no túnel principal, "um triste acidente cheio de vitímas, ocorrido enquanto você gravava na Cidadela dos Excluídos!" É isso que você dirá! É toda matéria que precisa, esqueça que um dia você soube a nosso respeito, do contrário, além de ver e sentir o cheiro de sua alma, sentirei também o gosto dela e, rezando você ou não para todos os seus santos de barro ou seu Deus mudo e invisível, descobrirá todo o frio de meu veneno!

A mão soltou- me e eu caí de joelhos buscando frenéticamente recuperar todo ar que me faltava.
Ainda arfando olhei em volta, não havia nenhum sinal de quem ou do que quer que fosse que tivesse estado alí.
Criaturas cujo rosto nem mesmo ví, talvez fosse melhor assim!
Ouví vozes e feixes de luz indistintos se aproximarem e em pouco tempo estava sendo socorrido pelos homens do corpo de bombeiros e encaminhado para o hospital.
Gostaria de poder dizer que fui um heroi e que, mesmo sob ameaças, seguí em cruzada pelos excluídos da cidade.
Mas não seria verdade!
Fiz exatamente o que me fora dito; "Um acidente terrível!" porém; "Um flagrante fantástico!"
Roubei suas almas com minha câmera, me alimentei de todas aquelas vidas, não apenas eu, mas também cada um dos milhares de cidadãos que contribuíram para os incríveis índices de audiência daquela tragédia!

Como malditos vampiros vivemos nessa cidade...

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