sábado, 27 de junho de 2009

Espelho D'água

A represa reluzia, refletindo o brilho intenso do sol que, em aproximadamente uma hora, já estaria escondido atrás das colinas no horizonte distante.
Sobre a superfície prateada da água, era possível ver ao longe um objeto redondo, negro pelo contraste junto ao espelho d’água.
Era fácil deduzir tratar-se de uma bóia de sinalização, pela forma como a esfera de cor indefinida acompanhava para cima e para baixo a respiração suave da represa.
A paisagem era bucólica, seria normal que qualquer observador adormecesse olhando para ela, mas os olhares, dos três garotos sentados a beira da água, estavam longe de serem absortos pelo espetáculo da natureza a sua frente.
Como três caçadores, olhavam fixamente para a bóia, vagueando vez ou outra a vista pela água em torno dela.
Nenhum ruído ou palavra eram emitidos por eles, o silêncio era quebrado apenas pelo som da água batendo na margem argilosa, o toque do vento na copa das árvores do bosque ao redor e o barulho distante dos carros em alta velocidade em uma estrada a muitos quilômetros dali.
A maioria das pessoas não entenderia o significado daquela bóia, mas para aqueles três garotos, assim como para qualquer outro garoto que more em regiões banhadas por represas, o significado era óbvio, fazia parte de suas vidas, de seu dia-a-dia.
Os três já deveriam ter ido para casa há muito tempo, mas a companhia mútua, mesmo que silenciosa, servira de motivação em sua vigília.
No inicio era apenas curiosidade que os mantinha alí, mas agora tornara-se um jogo mórbido, compreensível apenas pela crueldade inocente que é comum às crianças naquela idade. Arrancam as asas de moscas, colocam sal sobre lesmas, atiram pedras em pássaros... Mas não por serem verdadeiramente más, apenas não compreendem direito o valor da vida pois, suas próprias, ainda não lhes pesaram sobre os ombros da maturidade.
Um segundo ponto negro surgiu próximo a bóia. O primeiro a vê-lo foi o garoto da esquerda que, de olhos semi-serrados, ficou fitando a massa disforme com certa dúvida se era aquilo mesmo que procurava, insegurança que lhe custou o “jogo” pois, no mesmo instante em que avistou aquele ponto, o garoto do meio não exitou em levantar-se e sair correndo barranco acima, gritando:
__ Subiu! Subiu! Subiu!
E a repetição de tal palavra surtiu o efeito de uma invocação vodu, transformando a paisagem bucólica num cenário caótico de sirenes, vozes e multidão curiosa.
Os olhares das pessoas ficavam divididos entre o pequeno barco a remo, que se dirigia sem pressa até onde a bóia estava localizada, e o pranto desesperado de uma mulher parada ao lado do caminhão vermelho dos bombeiros.
Colocando as mãos sobre o rosto molhado de lágrimas, tentava não acreditar no que acontecia.
O oficial responsável por aquela operação de resgate se aproximou da pobre senhora, mantendo, é lógico, certa distância, e começou a declamar energicamente:
__Eu não lhe disse? Minha Senhora! Que não havia necessidade de mergulharmos para encontrar o corpo. Que assim que as veias e os órgãos se rompessem no interior da vítima, a variação de densidade faria com que emergisse. Só tivemos que marcar o local aproximado do afogamento!
E apontou para a bóia, a qual o barco a remo aproximava-se cada vez mais.
Os três garotos achavam incrível a forma como aquele bombeiro conseguia ser frio e racional em meio ‘aquela tragédia.
A mulher apenas chorava!
__ Sabe por que essas coisas acontecem?
Continuou o oficial.
__ Acontecem porque os jovens vem até a beira da represa para fazer suas festinhas, daí enchem a cara de cachaça e, para se mostrar, tentam atravessar a represa a nado pensando que é a mesma coisa que atravessar aqueles açudes com que estavam acostumados lá no nordeste.
Um momento de silêncio do oficial, como quem concede o direito de resposta a um acusado. Resposta que veio na forma de mais lágrimas e soluços.
O barco chegava finalmente até seu destino, após poucos segundos de análise o barqueiro levantou o braço, esse era o sinal, estava confirmado, era mesmo o corpo de uma pessoa.
A pobre mulher começou a debater-se em histeria. Teve de ser apartada pelas pessoas ao seu redor, desconhecidos que, como insetos, haviam sido atraídos pelas luzes coloridas da tragédia, mas que agora mostravam sua faceta humana, tentando apaziguar a dor de uma mãe.
Nosso valente oficial preferiu se afastar daquela senhora, não gostava de se envolver, virou de costas para a dor e toda a aflição que a acompanhava, preferindo encarar o morto, sereno e tranquilo, flutuando calmamente dentro daquelas águas onde o barqueiro preparava-se para reboca-lo. Ele tirou de dentro da embarcação uma corda e a amarrou em uma das pernas do afogado.Começou então a puxa-lo lentamente, os remos ganhavam a água quase sem sair de dentro dela. Era um trabalho meticuloso que não podia ser feito com pressa, muitos corpos tinham a tendência de se desmancharem quando rebocados muito rapidamente.
"E esse já está de molho há três dias'' Pensou o barqueiro. "A carne já deve estaqr se soltando dos ossos".
Um silêncio estéril reinou na peregrinação do barco até a margem, os flashes de sol rebatendo na água ondulada eram como lenços sendo abanados para a despedida de mais um passageiro de Caronte em sua travessia final.
O Bombeiro se aproximou do corpo levando pelo braço a angustiada senhora que mal se agüentava em pé e perguntou:
__ E então minha senhora! É o seu filho?
O corpo estava inchado, como se fosse explodir a qualquer momento, o tom da pele era de um roxo desbotado, esverdeado em algumas extremidades.
A mulher, olhando para aquele ser inumano, negou entre soluços:
__ Esse não é meu filho! Ele não é assim! Não é assim!!!
Mas o oficial sabia que era o filho dela, que poder era aquele que a água tinha de impedir que uma mãe reconhecesse o próprio filho! Não sabia!
Ordenou que o rapaz fosse removido da água com cuidado.
Seu serviço estava concluído, no necrotério a mulher reconheceria o filho através de alguma marca ou sinal pelo corpo.
Os bombeiros e suas sirenes se foram, junto deles, mãe e filho, mas os três garotos a beira da represa permaneceram imóveis, ficariam um pouco mais, afinal, a multidão ainda era numerosa e o fim de tarde estava quente.
Quem sabe mais alguém não resolvia banhar-se naquelas águas traiçoeiras e, se dessem sorte, talvez... Quem Sabe!?

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