quinta-feira, 25 de junho de 2009

Pródigo

Gosto dos relógios de ponteiro, neles o tempo parece mais real, mais palpável em seu movimento contínuo de horas, minutos e segundos. Não olho para ele, o deixo pendurado na parede atrás de mim. Prefiro apenas ouvir o tic-tac, o dia todo em minha mesa... Tic... Tac... Tic... Tac... Tic... Tac...
É quando sei que meu plantão está chegando ao fim, quando aquele compasso sutil dos ponteiros se torna ensurdecedor aos meus ouvidos, nem preciso olhar para confirmar a hora.
Os investigadores sempre me perguntam por que não o coloco num lugar onde possa ver, nunca respondo, não devo satisfação a eles, e sim eles a mim. Mas a verdade é que ver os ponteiros me dá a sensação de que à hora nunca passa, Já o tic-tac, esse nunca para.
Tenho passado mais tempo na delegacia do que em casa, ser delegado em uma cidade como São Paulo não e fácil. Enquanto isso o tempo e minha vida vão indo embora.
Meu filho, aquele garotinho que parece ter nascido ontem, já está se preparando para a faculdade, vai prestar vestibular.
Ele é estudioso, mas anda muito preocupado nos últimos dias. O vestibular é uma época de muita pressão para os jovens, preciso arrumar mais tempo para ele. Mas quem tem me preocupado mesmo é minha esposa, já faz meses que não sei o que é chegar em casa e vê-la acordada, espero que ela não esteja exagerando nos calmantes como eu tenho feito para agüentar meus plantões sem explodir, 100 mg de Prosac rebatidos com dois maços de cigarros e algumas doses de café, eventualmente algum uísque também. Preciso de férias!
A pressão de uma delegacia pode deixar qualquer delegado louco. São pastas e mais pastas. Casos em aberto que vão se acumulando nos arquivos, nas estantes, sobre minha mesa e até no chão, pelos cantos da sala. Parecem querer me sufocar.
É inútil tentar acompanhar o ritmo, já desisti de querer ser o super delegado, tentando resolver todos os crimes e salvar o mundo, fazer isso só aumenta o estresse.
Na cela provisória, projetada para quatro pessoas, já tem mais de vinte. Todos os presos reclamando de dor de dente, de barriga, unha encravada... Qualquer enfermidade que possa fazer com que sejam deslocados até um pronto socorro, dando assim alguma chance de fuga para eles.
Ao contrário do que se pensa, não há muitos policiais dentro de um DP, geralmente são apenas delegado, dois investigadores e um escrivão, todo o resto são policiais militares em trânsito.
Ficamos então com quatro pessoas para cuidar de mais de vinte, resolver os casos e ainda atender os boletins de ocorrência.
Como um preso ou outro está sempre sendo levado para um hospital, acabo ficando com um investigador a menos, que tem que dar uma de babá de marginal fujão.
O pior é que se nos recusamos a atendê-los, viramos alvo fácil dos famosos advogados de porta de cadeia e seus direitos humanos, gostaria que os direitos humanos fossem para os humanos direitos, mas infelizmente não é assim que funciona.
Na recepção do DP o povo vai se acumulando com seus dramas diários. O mais comum são os roubos a veículos. É sempre a mesma história, o cidadão entra ofegante querendo dar queixa do fato. Dizemos então para ele ligar para o um nove zero, daí ele fica olhando com cara de "Mas aqui não é a polícia!"
O que ele não entende é que a civil faz a investigação dos casos, ronda ostensiva é com a militar.
Outro problema, esse mais complicado, são os atentados. Facções criminosas disparando tiros na delegacia, na polícia e em qualquer coisa que esteja no caminho. Já foi o tempo em que morar perto de um distrito era garantia de segurança. Hoje em dia residir nessas áreas é um péssimo negócio.
Já quase fui premiado com uma medalha de chumbo no peito no último atentado, foi por pouco!
Como se tudo isso não bastasse, há ainda a corregedoria, a polícia da polícia, com a diferença que para nós não existem direitos humanos. Conseguem ser piores do que as facções criminosas.
Nunca sabemos quando vão atacar aparecendo de surpresa para uma inspeção, tentando achar pêlo em ovo nos relatórios, nos procedimentos ou qualquer outra coisa que possa ser convertida em suspensões, afastamentos e ficha suja, o que acaba com a chance de qualquer delegado que queira se tornar promotor algum dia, ou pelo menos se tornar o titular de alguma delegacia decente.
Sentado em minha mesa, fico pensando em tudo isso, embalado pelo ribombar nauseante dos ponteiros.
O telefone toca, apago o cigarro que acabei de acender. Só então noto que ando fumando demais, o cinzeiro está transbordando de bitucas.
___ Alô!
O escrevente me passa um caso que acaba de ser apresentado pela polícia militar, aparentemente um suicídio. Bairro bom, família boa, classe média e sem ficha. Não tem como escapar, vou ter que ir até o local.
Geralmente prefiro ficar na rua, ao menos não tenho que ficar preocupado com a corregedoria entrando pela porta do distrito policial para me falar do caos em que se encontra meu DP, como se eu não soubesse.
Depois que os bingos foram fechados, as delegacias mais parecem depósitos de máquinas caça-níquel. Mal dá para se mexer sem derrubar alguma coisa.
Por isso prefiro a rua. O problema é que já está quase na hora da troca de turno, se este caso estiver enrolado não saio tão cedo de meu plantão.
No caminho até o local torço para que seja realmente um suicídio, com bilhete e indícios óbvios. Se assim for, é rápido, do contrário...
Chego ao endereço que me foi passado. Classe média alta. Em frente, duas viaturas da militar paradas, pintando de tragédia a fachada com suas sirenes vermelhas.
Nem bem desço do carro e o tenente que está com a ocorrência se aproxima com saudações e reverências, delegados são sempre bajulados, afinal, os pm's sempre querem que o boletim de ocorrência e a perícia sejam feitos rápido para que o corpo possa ser retirado e não precisem passar a noite toda guardando a cena de crime, babás de defunto.
Tudo é interesse, não da população, são sempre pessoais.
___É o seguinte doutor...
O tenente me põe a par dos fatos.
O falecido (Jeferson, 17) teria ficado em casa para estudar para provas vestibulares, enquanto sua família (Pai, 47, Madrasta, 36-a mãe já morreu- e o meio irmão, 10) foi viajar. Isso na quinta de manhã. Hoje, domingo, por volta das 18 h, eles retornaram e encontraram o garoto morto em seu quarto, acionaram imediatamente serviços médico e policial.
Deixo o oficial falando sozinho, por hora é tudo que preciso saber.
Entro na casa, um leve cheiro azedo paira no ar da sala de estar, conheço esse odor, é o aroma da morte.
No sofá um homem está abraçado com uma mulher, ambos chorando. Com certeza os pais. Olho em volta a procura do meio irmão, não o vejo, pergunto por ele, foi levado para a casa de algum parente. Ainda bem, muitas vezes a família em choque se esquece das crianças e quando vamos ver estão tentando acordar o parente morto.
Peço para o oficial me levar até o quarto do garoto. Quando entramos na cozinha, o cheiro de podridão está bem mais forte. O corpo não deve estar nada bom, fez muito calor nos últimos dias e o corpo já estava a quatro apodrecendo, o quarto devia estar todo fechado e, por conseqüência, abafado. Pelo menos esse é o costume dos suicidas, o isolamento. Tiro o vidro de vick do bolso. Sempre ando com um para esses casos. Passo a pomada no nariz, mas sou advertido por um soldado que só isso não será suficiente para abafar o cheiro.
___Vou trazer um pano molhado para o senhor!
Enquanto espero a volta do soldado vejo escritos na geladeira branca que parecem ter sido feitos pelo morto com batom.
"Não deixem o Bruno ir ao meu quarto!"
Bruno devia ser o meio irmão, um último sinal de carinho para evitar o trauma na criança. O mesmo não é feito com relação aos pais. Provavelmente se trata da velha história do filho revoltado.
O pano chega, cubro o rosto e continuo seguindo o tenente.
Atravessamos a área de serviço, lavanderia, um amplo quintal gramado com alguma vegetação e, finalmente, ao fundo do quintal o quarto do garoto.
Minhas suspeitas são confirmadas por aquele dormitório improvisado, que antes devia ser um depósito de ferramentas de jardinagem. Jeferson procurou o lugar mais distante dentro da própria casa para viver, ali ficaria o mais longe possível do resto de sua família. Era um desajustado, muito provável que fosse introvertido e talvez até usasse drogas que o deixassem deprimido, acabando por levá-lo ao suicídio.
Os pais deviam ter achado que aquele jeito estranho do rapaz era normal para a idade, que o garoto só queria um pouco de espaço. Há muitos pais cegos nesse mundo!
Antes de entrar no quarto reparo na tranca da porta, arrombada, isso é bom, significa que estava fechada por dentro, mais uma evidencia de suicídio. Parece que vou embora cedo hoje!
Entro. A situação é pior do que eu imaginava, o teto do dormitório-depósito é direto nas telhas, durante o dia, com o sol batendo, deve se transformar num forno já que o local é pequeno e sem arejamento de ar, mesmo com o pano úmido é difícil respirar lá dentro.
O corpo esta em cima da cama, negro, inchado e cheio de vermes transitando pelo buraco de bala no que parece ser a cabeça do infeliz. Conheço esse tipo de inchaço, é daqueles que explodem quando removidos. Eu que não quero estar perto quando isso acontecer!
A arma está caída ao lado da cama, um revolver calibre trinta e oito. Jeferson escolheu bem a arma, eu mesmo tenho um revólver igual aquele em casa, de impacto, onde a bala bate estilhaça, a chance de sobreviver e muito pouca. Diferente de outras como a nove mm que é de perfuração, atravessa até colete a prova de balas, mas muitas vezes não mata, conhecí um cara que deu um tiro no ouvido que saiu pelo outro lado e não morreu!
___ O pai não faz idéia de onde ele a conseguiu.
O tenente me diz que a arma não é do pai, mando recolhê-la para a perícia, já que a numeração está intacta.
Começamos a procurar o bilhete, suicidas adoram deixar um, na verdade o que querem é atenção e o suicídio é o ato derradeiro para consegui-la.
Se os pais tivessem prestado um pouco mais de atenção, se importado um pouco mais! Mas o garoto devia lembrar ao pai de sua falecida esposa, e a madrasta, ora! Não era filho dela, porque ela se preocuparia? Já tinha seu próprio rebento para cuidar!
Espalhadas pelo chão, apostilas. O mesmo cursinho preparatório que meu filho. Podia ser meu garoto naquela cama! Afugento esses pensamentos tolos de minha cabeça, dei uma educação diferente para meu filho, não deixo com que ele se sinta um estranho dentro da própria casa, mais do que pai e filho, somos amigos. Nos conhecemos.
___Aqui doutor!
O tenente encontra o bilhete e me entrega. A mesma história de sempre. Ninguém me ama! Ninguém me quer! E blá blá blá! O importante e que vou poder ir embora. Como é declaradamente um caso de suicídio o delegado titular pode assumir quando chegar sem problemas, não há pressa, a investigação está praticamente encerrada.
Vou embora ao mesmo tempo que a perícia. No meio do caminho decido não voltar até o distrito, vou embora para casa direto, já vim com meu carro pensando nessa possibilidade.
Após estacionar, tiro a roupa que visto e a deixo no chão da garagem, está impregnada com aquele cheiro fétido. Continuo a sentir o odor grudado em minha pele.
Tomo uma ducha e me sinto mais aliviado. Passo rapidamente pelo quarto de meu filho. Está dormindo, fecho a porta silenciosamente e vou para cama. Como imaginava. Minha mulher já está dormindo também. Cheiro o copo vazio sobre o criado-mudo, lexotan! Amanhã preciso ter uma conversa séria com ela.
Apesar do cansaço não consigo pegar no sono, é estranho como, mesmo estando há quase trinta anos nessa profissão, alguns casos continuam a nos afetar.
Debato-me na cama e, meio acordado, meio dormindo, entro num misto de tormento e pesadelo a me trazerem de volta cenas e pensamentos do meu dia.
"O garoto escolheu bem o revolver (...) eu mesmo tenho um igual aquele." "O mesmo cursinho que meu filho." "Meu filho (...) anda preocupado nos últimos dias."
De repente o quebra-cabeça se encaixa. Dou um salto da cama e abro o guarda-roupa. Tiro uma caixa de madeira de dentro e levanto sua tampa.
Como pensava, vazia!
Não sei como não percebi, provavelmente o cansaço e a pressa de ir embora.
Aos tapas e berros tiro meu filho da cama.
___ Como pôde?
Demora um pouco, mas ele acaba entendendo do que se trata, fica surpreso com o suicídio do amigo.
___Eu não sabia! Juro!
A explicação dele é de que, quando o amigo lhe pediu uma arma emprestada, ele não sabia que era para aquilo. Como se isso fosse desculpa. Se tivesse usado para matar outra pessoa seria pior ainda.
Sinto-me enjoado, o peito pesado, a pulsação parece ter ido a cem quilômetros por hora. Desnorteado, saio do quarto daquele irresponsável e vou direto até a gaveta de remédios da minha esposa. Tomo um de seus comprimidos para me acalmar. Sento-me na ponta de minha cama com as mãos na cabeça e começo a pensar em tudo que aconteceu e no que devo fazer. A primeira coisa é chamar meu advogado. Ainda bem que meu filho é menor de idade, no máximo serviço comunitário para ele.
Fui um tolo, talvez nossos filhos sempre nos sejam estranhos. Mas isso não tem importância agora, terei muito tempo para passar com ele e conhecê-lo melhor, afinal, é apenas uma questão de tempo até a perícia levantar a numeração do revólver e passar o caso para a corregedoria.
Não eram as férias que eu imaginava, mas...

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