sábado, 26 de setembro de 2009

O Fio da Meada

Baseado numa história real

O policial em pé a minha frente vai vomitando toda sua ocorrência para mim (Deus! Como odeio esses jargões da PM!) enquanto minha experiente escrivã, senhorita Cinthia, uma solteirona de 50 anos, vai digitando a história.

__ Estavamos em "Patru com vistas" quando "pagou" via "rede- rádio" um "QRU" de latrocínio. Fomos com uma "certa" até o "QTH" e encontramos o dono da residência "zerado" no quarto, aparentemente a pauladas, e sua esposa trancada com o filho no banheiro. Fizemos uma busca no local, mas os "malas" já tinham se evadido!

Eu fico lá... Balançando a cabeça enquanto minha atenção está focada na placa de identificação no peito do Cabo da PM a minha frente. Seu sobrenome é Cetanelle, deve ser de descendência italiana. Mas não foi isso que chamou minha atenção, foi a placa em sí que diz: CABO CETANELLE __ CÁ BOCETA NELLE!
Começo a dar risada e nem o cabo nem a escrivã entendem nada.

__Tudo bem doutor?

Digo que sim e me recomponho. Dispenso o cabo, prefiro pegar os detalhes com a família, então peço para que o policial chame a mulher da vítima... "com uma certa!" Digo irônico ao PM, mas quem entende é a senhorita Cinthia, que desvia a vista para o lado escondendo o sorrindo.
A maioria das pessoas acha que o trabalho de delegado é repleto de aventuras e mistérios como nos filmes. Tolice! Na verdade é um trabalho burocrático, passo a maior parte do tempo sentado nessa mesa, ouvindo pessoas e assinando papéis.
É no depoimento, na história ou nas lacunas dela que pode estar a solução para os casos:
Um apelido dito sem querer por um dos bandidos!
Uma cicatriz ou tatuagem percebidas pelas vítimas!
Alguma informação que os bandidos tinham e que não deveriam ter!
É afinando a história que encontramos um fio solto no novelo, o fio da meada! Daí é só puxa- lo!
A esposa do falecido entra, olhos vermelhos, lenço na mão e um belo corpo! O rosto está inchado pelas lágrimas e ela já não é nenhuma mocinha, mesmo assim é possivel perceber tratar- se de uma mulher bonita e bem cuidada.
Não emito nenhuma saudação infame do tipo: __Tudo bem?__ Apesar de ter que admitir que cometí muitas dessas gafes no inicio de minha carreira.
Apenas aponto com o braço para que ela se sente na cadeira a minha frente.

__ Pode me dizer seu nome e o nome de seu esposo?

__ Sandra Deodato, e José Henrique Deodato.

__ As idades Dona Sandra?

__ A minha é 36 e a de meu marido é... era 42!

A escrivã interrompe pedindo licença para sair da sala, eu concedo e continuo minhas perguntas:

__ Qual era a profissão dele?

__ Tinha uma empresa de embalagem plásticas.

__ Era empresário então!

__ Isso! Um microempresário!

E minha enquete segue, em meio ao som da impressora matricial trabalhando initerruptamente na recepção, Sandra responde muito claramente:

__ Estavamos morando aquí na região a cerca de três meses, nos mudamos da zona sul após um sequestro que sofrí... Não, os sequestradores não foram pegos... Meu marido pagou o resgate e só notificou a polícia após minha libertação... Sim, eram os mesmos homens! Nunca vou esquecer aqueles rostos!

Faço uma pausa nas perguntas para que a mulher chore um pouco. Empurro na direção dela a caixa de lenços de papel sobre minha mesa e espero.

__Me desculpe!

Diz a mulher após três minutos.
Digo para ela não se preocupar, para ficar a vontade, que sei que é difícil e blá blá blá... Se um dia deixar de ser delegado vou virar psicólogo!
Minha escrivã retorna com alguns papéis na mão.
Volto então ao depoimento:

__Mas me diga, Dona Sandra! Como foi que tudo aconteceu?

__ Estava em casa com meu nenem, deveria ter ido para a academia de ginástica onde malho mas ela não abriria hoje, aproveitei então para dar folga para nossa empregada.
"Meu marido chegou no horário de sempre, mas rendido por dois homens. Um deles me trancou no banheiro com meu filho e não pude ver mais nada, apenas ouví enquanto batiam no meu marido para que dissesse onde tinha dinheiro na casa. Ele apenas gritava, dez, vinte, trinta minutos... Até que não gritou mais!
Desesperada, liguei para a polícia! Mas era tarde!

Nova pausa, mesmo motivo!
Pelo jeito vou precisar comprar outra caixa de lenços!
A escrivã me dá os papéis que trouxe. É o B.O de sequestro do casal, como disse, a senhorita Cinthia é muito eficiente! Numa folheada confirmo que a história bate.
Mando a mulher para a sala ao lado fazer um novo retrato falado dos sequestradores, mas antes faço a última pergunta:

__ E havia mesmo dinheiro na casa?

A mulher me olha com olhos carregados e responde:

__ Não! Nem um centavo em casa ou no banco! Estamos numa situação muito difícil desde o sequestro.

Peço para a escrivã acompanhar Sandra até o desenhista técnico e trazer na volta o Senhor João Carlos Deodato, irmão e sócio da vítima.

__ Com licença doutor?

__ Sente- se sr. João!

Explico sobre a co- relação do assassinato com o sequestro de três meses antes e começo meu inquérito:

__ Faz idéia de por que seu irmão não acionou a polícia na época do sequestro?

__ Medo! Cansei de dizer a ele para que chama- se a polícia, mas Sandra estava grávida, para ganhar nenem, e ele quis resolver tudo o mais rápido possivel!

__ Seu irmão pagou cinquenta mil reais de resgate, sabe quanto eram seus fundos na época?

__ Ele tinha exatamente essa quantia! Cinquenta mil!

__ Interessante! E sabe quem tinha acesso aos rendimentos dele na empresa?

João Carlos precisa de um tempo para pensar.

__ Eu e os funcionários da contabilidade. Acho que só!

__ Quantos funcionários?

__ São três...

Ele me passa o nome de cada um deles e permito que se retire.
Mal a porta se fecha e alguém a abre perguntando se tenho um minuto.

__ Agora não posso, estou ocup... Ora! Mas é você seu safado! Quanto tempo! Vamos, entre!

É Alvaro, um velho amigo meu que trabalha na perícia. Havia sido escalado para o latrocínio de José Deodato e aproveitou para me visitar.
Senhorita Cinthia nos tráz café para ajudar a botar a conversa em dia:

__ E a esposa? Como estão os filhos? Precisamos marcar um churrasco! O governo tá cada dia pior! Antigamente não era assim! Tem visto o Palhares? Santista ainda!? Não cansou de sofrer? Ahahahahahhh!!!

Alvaro me mostra então as fotos tiradas por ele na cena do crime. A cabeça careca parecia uma melancia de tão inchada.
Seria duro saber se o pobre diabo havia morrido espancodo ou sufocado pois, além das mãos e dos pés, também o rosto da vítima tinha sido envolvido por fita adesiva larga, Interessante!
Vendo que estou ocupado Alvaro se despede. Acompanho meu amigo até a porta da sala, de onde chamo novamente o Cabo Cetanelle, dessa vez o trocadilho nem passa por minha cabeça!

__ Diga- me Cabo, qual foi seu procedimento e o de seu parceiro ao chegarem no local?

__ Acionei o resgate para a vítima mesmo não encontrando pulsação e arrombei a porta do banheiro de onde a esposa pedia socorro! Meu parceiro fazia varredura pela residência a procura dos criminosos!

__ Obrigado cabo, é só isso!

Peço para a escrivã trazer novamente o irmão da vítima até minha sala. Converso com ele e em seguida chamo Dona Sandra. Ela vem, já com os retratos prontos, senta- se a minha frente e eu lhe pergunto:

__ Esquecí de lhe fazer a pergunta mais importante! A quanto tempo malha na mesma academia?

A mulher fica pálida e repito a pergunta.

__ Dois anos.

Responde enfim. Eu continuo:

__ Eu ouví sua história e percebí que tem muitas pontas soltas, como quando você disse que os assaltantes perguntavam ao seu marido onde havia dinheiro. Eu nunca ví amordaçarem ninguém pra depois interrogar! Também achei estranho você não ter ligado imediatamente para a polícia após ser trancada no banheiro, segundo suas palavras você esperou cerca de meia hora...

Continuo pressionando Sandra, que nega tudo. Comparo os retratos falados de três meses atrás com os feitos há pouco, não chegam nem perto de serem parecidos:

__ Diz a verdade Sandra, nunca houve sequestro, foi estelionato, você e seu comparsa fingiram o sequestro e agora que o dinheiro acabou planejaram ficar com o dinheiro do seguro de vida do seu marido.

Foi para saber isso que havia chamado novamente João Carlos, cheguei a pensar que ele estaria envolvido, mas me pareceu mais provável alguém da academia, que aliás não abriu no dia!
Demora um pouco, mas Sandra acaba confessando, entregando o amante, um instrutor da academia, e desabando em lágrimas.
Ela estica o braço para pegar um lenço de papel mas eu puxo a caixa, ainda há alguns e outras ocorrências para ouvir, posso precisar com outra pessoa!
Mando um dos investigadores recolhe- la a uma cela. Saio um pouco de dentro da minha sala para tomar um ar, me sinto incrível, ao invés de um crime resolví logo dois.
Na recepção outras pessoas com outras histórias reclamam da demora, acham um absurdo demorar tanto para fazer um boletim.
Ainda bem que não são eles os delegados!

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